terça-feira, 31 de dezembro de 2013
Folhetim
de Gabriel Arcanjo
Certa feita estava eu na bodega de meu pai, na rua que hoje recebe o seu
nome, quando chegou a mim velha e asquerosa freguesa: era a Banana, anciã
sexagenária, corcunda e de penetrantes olhos azuis. Tudo nela era repelente e
horroroso, os cabelos esvoaçantes e grisalhos, a boca asquerosa e murcha, a
pele enrugada e branca, o andar cambaleante e trôpego. Tudo era feio,
terrivelmente feio. Menos seus olhos de um azul esmeralda, um azul oceânico.
Por trás daquela mascara mortuária de dor e de tristeza, envelhecida pelo
tempo, era belo o olhar. Era jovem, falava coisas numa língua eterna, medonha,
tristonha e celeste. Havia naquele olhar de oceano uma jovialidade de criança,
uma tristeza tão grande, uma dor tão medonha, uma nobreza tão distinta que
gelou minha alma de garoto imberbe no instante em que nossos olhos se cruzaram!
A velha era um enigma, com seus olhos de gavião, faróis em alto mar tenebroso,
estrela Dalva em manhã de outono. Os olhos da velha anciã eram bem mais jovens
do que ela. Diante daquele olhar a fatalidade da existência me veio à mente, e
o tempo, que corre como um rio revolto na direção do abismo, falou comigo com
sua voz de esfinge: - Este é o destino do Homem! Uma besta pensante à beira do
abismo!
Eu disse a velha: - Dona Maria, não beba não, a senhora pode morrer! E ela me
falou, encarando-me como uma harpia monstruosa saída da Odisseia: “-Jerônimo,
a gente morre é em vida! Eu já morri há muito tempo! Este corpo que tu vê é o
cadáver da bela Maria Alves, morta há muito tempo, antes mesmo de tu nascer!”
Aquelas palavras ecoaram em minha memória daquele dia em diante, e eu recordo
delas até hoje, com a força avassaladora de um maremoto: “-Eu já morri há muito
tempo!”.
A velha harpia disse em tom zombeteiro que “-quando eu era novinha um
rapagão assim como tu num me escapava não! Eu ia me agarrar contigo, mostrar o
que a vida tem de bom!” e riu ruidosamente. Eu me afastei enojado. Bebeu seu
trago de cachaça, cuspiu ruidosamente no chão, e bateu com o pé esquerdo em
cima do cuspe dizendo palavras “mágicas” em tom de escárnio, de provocação e
evocando Exu e Tranca Rua: “-Cachaça jiribiba, primeiro vai cantada, depois vai
bibida, em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém!” e entornou o copo
novamente de modo voraz. Velha meretriz abandonada pelos amantes quando ficou
feia e velha demais para a cobiça dos homens da cidade, vivia de vender bananas
na estação do trem (vinha daí o apelido), e de fazer “despachos” para as
pessoas mais supersticiosas (por uns trocados, ela arranjava marido para mulher
abandonada, tirava mau-olhado, ajeitava “espiéla caída”, arrumava o “vento” de
criança com quebrante, e com uma porção misteriosa fazia mulher barriguda
abortar).
Depois de anos atormentado pela história da vida desta figura assombrosa que
mais parece saída das páginas de um romance de Jorge Amado, resolvi dividir com
os meus leitores a vida da Banana. Para legar a posteridade esta existência
fatal. Não se iluda, apesar da maioria dos nomes serem fictícios (medida para
me proteger da sanha vingadora dos parentes da anciã), esta é uma história
real.
Vamos à narrativa: Havia na Ipu dos anos inicias do século XX práticas e
costumes sexuais que nossos avós, por razões ligadas a excessiva moralidade da
época, não deixaram registradas em livros, jornais, ou revistas, e por isso,
somos erroneamente levados a acreditar que nossos antepassados eram “santos”.
Pois vou contar-lhes agora uma história que ilustra bem o quanto nos iludimos a
cerca da sexualidade de nossos avós: um influente capitalista, “coronel”
abastado (José Alves de Araújo), de “ilustre família local”, dona de
terras e de ponto no mercado, insatisfeito com a frieza de sua esposa,
encantou-se pelas graças de carnuda e desinibida cabocla sertaneja da
periferia, e passou a cortejá-la com olhares maliciosos e com palavreado de
duplo sentido: “-Olha, na minha fazenda tem moradia para uma caboca ‘boa’ como
você!”, dizia o galanteador, quando se via sozinho em seu comércio com aquela
cunhã faceira que lhe tirava o sono. “-Aqueles seios de mamão maduro! Aqueles
quartos de melancia grande! Aquela boca de manga jasmim! Ai de mim, que não te
tenho nos braços, Nêga manhosa cheirando a jasmim! Um dia eu te roubo, cunhã
danada! Te carrego pros matos, pra morar comigo no meu sítio do Escondido,
longe das arengas da megera da minha mulher!” Dizia o comerciante, em cochicho,
ao pé do ouvido de Maria de Jesus, quando lhe permitiam os fregueses de
sua venda no mercado.
Casado há dez anos com uma “mulher de família” (sua prima), o
galanteador José Alves sonhava com outros prazeres, em outros braços, pois
havia coisas que só se fazia com mulher perdida, mulher de “vida fácil”, mulher
“sem vergonha”: onde já se viu, homem casado desrespeitar a esposa,
propondo-lhe a posição cachorrinho, o “frango assado”, o cavalinho, o sorvete,
ou coisa que o valha, para “incrementar” o casamento! Era pra isso que havia as
putas do cabaré! A esposa era sagrada, com ela não se fazia sexo, se fazia o
ato abençoado da procriação entre um Pai-nosso e uma Ave-Maria. Já com as
putas, o homem procurava o verdadeiro prazer, o gozo supremo, o delírio do amor
carnal. “- Deus que me defenda, Zé! Vai te confessar! Tu tá é com o Cão nos
couros!”, disse a esposa, nas poucas investidas do marido faminto. Você não se
casou com uma puta, coronel! Coronel ele já nem era, se fosse, como seu pai, a
coisa era diferente. O velho teve pra mais de trinta filhos, todos eles
fecundados nas comadres e nas afilhadas que ele abrigava em suas terras!
Mulher que morava nas terras do velho coronel Felix José de Sousa já se sabia,
ele comia mesmo! Era tiro e queda! Não tinha escapatória. E os maridos e filhos
que aguentassem os chifres!
Mas o José não conseguia repetir a fama do pai. Do pai mesmo ele só
herdou uma pequena fatia das terras e o apelido de coronel. A fortuna da
família fora dividida entre os 15 filhos legítimos de seu pai com sua mãe.
Maria de Jesus, seu “sonho de consumo”, era uma cunhã sem eira nem beira,
vítima maior de um sistema social opressivo, que fazia dos pobres servos da
gleba, vassalos submissos vivendo de favores do patrão. Pedindo “abença meu
padim”, trabalhando de graça pros ricos, sendo “eleitores” no rebanho dos
candidatos favoritos do patrão, e assistindo aos filhos do patrão vir nas
férias escolares para lhes perseguirem as filhas donzelas, ou a mulher, ainda
fogosa, nas trilhas e arbustos da fazenda. A mulher pobre, se bela, era um
prêmio de caça para as cimitarras dos jovens moços, sedentos de sexo. Numa
época em que o hímen era um totem sagrado, mulher descabaçada era prejuízo
certo, não conseguia arrumar casamento, ou se arranjava era com homem viúvo.
Como o pobre do morador poderia pressionar o patrão para reparar o “erro” do
filho do “homi” com sua filha donzela? Não tinha jeito, era casá-la na surdina
com o primeiro infeliz que aparecesse!
Mas voltando ao caso mencionado, Maria aceitava as “provocações” de José
sem muita resistência; ao contrário, retribuía-lhe os olhares insinuantes, os
gracejos atrevidos, e sorria baixinho dizendo: - Deixe disso seu Zé! Eu
sou uma moça-donzela! Comigo só depois do casamento! E entre os sacos de
farinha e rapadura o Dom Juan do Ipu vez ou outra conseguia arrancar carinhos
da amante arredia: um beijo roubado na boca, uma mão boba nos seios, um
sussurro ao ouvido, e ele conhecia ali, em sua mercearia, as portas do paraíso
na terra. –Volte amanhã, que eu tenho um presentinho pra ti, Nega! (Nega era o
apelido de Maria) -Volto não! O senhor tá é mal intencionado! Tô não,
Nega!
Não deu outra, em pouco tempo José Alves arrumou para a cabocla casa,
comida e “roupa lavada”, transferiu o pai, a mãe e os irmãos da moça para as
suas terras, no Escondido. O pai, um caboclo leal ao patrão, nada disse quando
percebeu os galanteios de Zé para a filha adolescente: Isso é intriga de gente
fofoqueira, mulher! E é meu cumpade! No mato-a-pasto do quintal, num fim
de semana qualquer, enquanto a esposa assistia a missa dominical com o padre
Gonçalo, Seu Zé pulou a cerca e foi “cobrar o aluguel”: - Vem cá, Nega! E
agarrou a Nega pelo braço, abraçando-a por trás, nas ancas, como cobra sucuri.
Vem cá Nega! O cumpade Honório não tá, ne? Num tá não sinhô! Hoje tu me
paga as raiva que tu me fez lá no mercado, Nega! E agarrou Maria com seu abraço
de sucuri, metendo a mão por baixo da saia! Vem cá Nega! Faltava-lhe o fôlego,
o coração a ponto de explodir. Vem cá Nega! José e Maria se agarravam, se
misturavam, um querendo entrar no outro, um querendo comer o outro. Vem cá
Nega! Em volta dos amantes, o dia era testemunha, a relva era testemunha, as
vacas eram testemunhas. Vem cá Nega! (Faltava-lhe o fôlego!). E José, que era
inércia, virou vulcão: Ai, ai, Nega safada! E o dia fez-se gozo, e o gozo
fez-se rio, e o rio fez-se chuva num José lajeiro seco, de sol a pino, na
caatinga braba do verão. Ai, ai, nega safada! Eu sei que morro! Vem cá minha
pombinha! Dá aqui este cangote, Nega danada! E ali, naqueles seios de mel,
naqueles olhos de lua, naquelas pernas de mulher-dama, o Zé Alves redescobriu a
alegria de viver: -Ai meu Deus, que cunhã boa!, dizia ele, num gozo e num
desmaio, agarrado à cintura de Maria, como um náufrago no mar.
(Vitorino Filho).
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