segunda-feira, 4 de maio de 2015

terça-feira, 31 de dezembro de 2013
 Folhetim de Gabriel Arcanjo
Certa feita estava eu na bodega de meu pai, na rua que hoje recebe o seu nome, quando chegou a mim velha e asquerosa freguesa: era a Banana, anciã sexagenária, corcunda e de penetrantes olhos azuis. Tudo nela era repelente e horroroso, os cabelos esvoaçantes e grisalhos, a boca asquerosa e murcha, a pele enrugada e branca, o andar cambaleante e trôpego. Tudo era feio, terrivelmente feio. Menos seus olhos de um azul esmeralda, um azul oceânico. Por trás daquela mascara mortuária de dor e de tristeza, envelhecida pelo tempo, era belo o olhar. Era jovem, falava coisas numa língua eterna, medonha, tristonha e celeste. Havia naquele olhar de oceano uma jovialidade de criança, uma tristeza tão grande, uma dor tão medonha, uma nobreza tão distinta que gelou minha alma de garoto imberbe no instante em que nossos olhos se cruzaram! A velha era um enigma, com seus olhos de gavião, faróis em alto mar tenebroso, estrela Dalva em manhã de outono. Os olhos da velha anciã eram bem mais jovens do que ela. Diante daquele olhar a fatalidade da existência me veio à mente, e o tempo, que corre como um rio revolto na direção do abismo, falou comigo com sua voz de esfinge: - Este é o destino do Homem! Uma besta pensante à beira do abismo!
        Eu disse a velha: - Dona Maria, não beba não, a senhora pode morrer! E ela me falou, encarando-me como uma harpia monstruosa saída da Odisseia: “-Jerônimo, a gente morre é em vida! Eu já morri há muito tempo! Este corpo que tu vê é o cadáver da bela Maria Alves, morta há muito tempo, antes mesmo de tu nascer!” Aquelas palavras ecoaram em minha memória daquele dia em diante, e eu recordo delas até hoje, com a força avassaladora de um maremoto: “-Eu já morri há muito tempo!”.
A velha harpia disse em tom zombeteiro que “-quando eu era novinha um rapagão assim como tu num me escapava não! Eu ia me agarrar contigo, mostrar o que a vida tem de bom!” e riu ruidosamente. Eu me afastei enojado. Bebeu seu trago de cachaça, cuspiu ruidosamente no chão, e bateu com o pé esquerdo em cima do cuspe dizendo palavras “mágicas” em tom de escárnio, de provocação e evocando Exu e Tranca Rua: “-Cachaça jiribiba, primeiro vai cantada, depois vai bibida, em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém!” e entornou o copo novamente de modo voraz. Velha meretriz abandonada pelos amantes quando ficou feia e velha demais para a cobiça dos homens da cidade, vivia de vender bananas na estação do trem (vinha daí o apelido), e de fazer “despachos” para as pessoas mais supersticiosas (por uns trocados, ela arranjava marido para mulher abandonada, tirava mau-olhado, ajeitava “espiéla caída”, arrumava o “vento” de criança com quebrante, e com uma porção misteriosa fazia mulher barriguda abortar).    
        Depois de anos atormentado pela história da vida desta figura assombrosa que mais parece saída das páginas de um romance de Jorge Amado, resolvi dividir com os meus leitores a vida da Banana. Para legar a posteridade esta existência fatal. Não se iluda, apesar da maioria dos nomes serem fictícios (medida para me proteger da sanha vingadora dos parentes da anciã), esta é uma história real.
Vamos à narrativa: Havia na Ipu dos anos inicias do século XX práticas e costumes sexuais que nossos avós, por razões ligadas a excessiva moralidade da época, não deixaram registradas em livros, jornais, ou revistas, e por isso, somos erroneamente levados a acreditar que nossos antepassados eram “santos”. Pois vou contar-lhes agora uma história que ilustra bem o quanto nos iludimos a cerca da sexualidade de nossos avós: um influente capitalista, “coronel” abastado (José Alves de Araújo), de “ilustre família local”, dona de terras e de ponto no mercado, insatisfeito com a frieza de sua esposa, encantou-se pelas graças de carnuda e desinibida cabocla sertaneja da periferia, e passou a cortejá-la com olhares maliciosos e com palavreado de duplo sentido: “-Olha, na minha fazenda tem moradia para uma caboca ‘boa’ como você!”, dizia o galanteador, quando se via sozinho em seu comércio com aquela cunhã faceira que lhe tirava o sono. “-Aqueles seios de mamão maduro! Aqueles quartos de melancia grande! Aquela boca de manga jasmim! Ai de mim, que não te tenho nos braços, Nêga manhosa cheirando a jasmim! Um dia eu te roubo, cunhã danada! Te carrego pros matos, pra morar comigo no meu sítio do Escondido, longe das arengas da megera da minha mulher!” Dizia o comerciante, em cochicho, ao pé do ouvido de Maria de Jesus, quando lhe permitiam os fregueses de sua venda no mercado.
Casado há dez anos com uma “mulher de família” (sua prima), o galanteador José Alves sonhava com outros prazeres, em outros braços, pois havia coisas que só se fazia com mulher perdida, mulher de “vida fácil”, mulher “sem vergonha”: onde já se viu, homem casado desrespeitar a esposa, propondo-lhe a posição cachorrinho, o “frango assado”, o cavalinho, o sorvete, ou coisa que o valha, para “incrementar” o casamento! Era pra isso que havia as putas do cabaré! A esposa era sagrada, com ela não se fazia sexo, se fazia o ato abençoado da procriação entre um Pai-nosso e uma Ave-Maria. Já com as putas, o homem procurava o verdadeiro prazer, o gozo supremo, o delírio do amor carnal. “- Deus que me defenda, Zé! Vai te confessar! Tu tá é com o Cão nos couros!”, disse a esposa, nas poucas investidas do marido faminto. Você não se casou com uma puta, coronel! Coronel ele já nem era, se fosse, como seu pai, a coisa era diferente. O velho teve pra mais de trinta filhos, todos eles fecundados nas comadres e nas afilhadas que ele abrigava em suas terras! Mulher que morava nas terras do velho coronel Felix José de Sousa já se sabia, ele comia mesmo! Era tiro e queda! Não tinha escapatória. E os maridos e filhos que aguentassem os chifres!
Mas o José não conseguia repetir a fama do pai. Do pai mesmo ele só herdou uma pequena fatia das terras e o apelido de coronel. A fortuna da família fora dividida entre os 15 filhos legítimos de seu pai com sua mãe. Maria de Jesus, seu “sonho de consumo”, era uma cunhã sem eira nem beira, vítima maior de um sistema social opressivo, que fazia dos pobres servos da gleba, vassalos submissos vivendo de favores do patrão. Pedindo “abença meu padim”, trabalhando de graça pros ricos, sendo “eleitores” no rebanho dos candidatos favoritos do patrão, e assistindo aos filhos do patrão vir nas férias escolares para lhes perseguirem as filhas donzelas, ou a mulher, ainda fogosa, nas trilhas e arbustos da fazenda. A mulher pobre, se bela, era um prêmio de caça para as cimitarras dos jovens moços, sedentos de sexo. Numa época em que o hímen era um totem sagrado, mulher descabaçada era prejuízo certo, não conseguia arrumar casamento, ou se arranjava era com homem viúvo. Como o pobre do morador poderia pressionar o patrão para reparar o “erro” do filho do “homi” com sua filha donzela? Não tinha jeito, era casá-la na surdina com o primeiro infeliz que aparecesse!
Mas voltando ao caso mencionado, Maria aceitava as “provocações” de José sem muita resistência; ao contrário, retribuía-lhe os olhares insinuantes, os gracejos atrevidos, e sorria baixinho dizendo: - Deixe disso seu ! Eu sou uma moça-donzela! Comigo só depois do casamento! E entre os sacos de farinha e rapadura o Dom Juan do Ipu vez ou outra conseguia arrancar carinhos da amante arredia: um beijo roubado na boca, uma mão boba nos seios, um sussurro ao ouvido, e ele conhecia ali, em sua mercearia, as portas do paraíso na terra. –Volte amanhã, que eu tenho um presentinho pra ti, Nega! (Nega era o apelido de Maria) -Volto não! O senhor tá é mal intencionado! Tô não, Nega! 

        Não deu outra, em pouco tempo José Alves arrumou para a cabocla casa, comida e “roupa lavada”, transferiu o pai, a mãe e os irmãos da moça para as suas terras, no Escondido. O pai, um caboclo leal ao patrão, nada disse quando percebeu os galanteios de Zé para a filha adolescente: Isso é intriga de gente fofoqueira, mulher! E é meu cumpade!  No mato-a-pasto do quintal, num fim de semana qualquer, enquanto a esposa assistia a missa dominical com o padre Gonçalo, Seu Zé pulou a cerca e foi “cobrar o aluguel”: - Vem cá, Nega! E agarrou a Nega pelo braço, abraçando-a por trás, nas ancas, como cobra sucuri. Vem cá Nega! O cumpade Honório não tá, ne? Num tá não sinhô! Hoje tu me paga as raiva que tu me fez lá no mercado, Nega! E agarrou Maria com seu abraço de sucuri, metendo a mão por baixo da saia! Vem cá Nega! Faltava-lhe o fôlego, o coração a ponto de explodir. Vem cá Nega!  José e Maria se agarravam, se misturavam, um querendo entrar no outro, um querendo comer o outro. Vem cá Nega! Em volta dos amantes, o dia era testemunha, a relva era testemunha, as vacas eram testemunhas. Vem cá Nega! (Faltava-lhe o fôlego!). E José, que era inércia, virou vulcão: Ai, ai, Nega safada! E o dia fez-se gozo, e o gozo fez-se rio, e o rio fez-se chuva num José lajeiro seco, de sol a pino, na caatinga braba do verão. Ai, ai, nega safada! Eu sei que morro! Vem cá minha pombinha! Dá aqui este cangote, Nega danada! E ali, naqueles seios de mel, naqueles olhos de lua, naquelas pernas de mulher-dama, o Zé Alves redescobriu a alegria de viver: -Ai meu Deus, que cunhã boa!, dizia ele, num gozo e num desmaio, agarrado à cintura de Maria, como um náufrago no mar.
(Vitorino Filho). 

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