quinta-feira, 28 de maio de 2015

PARTE 1
                                                                            
N
um amplo salão azul, de uma única porta cor de abóbora e nenhuma janela, muitos jornalistas se amontoavam.


- Por favor, conte-nos como foi sua viagem ao espaço?
- Diga-nos como ficou tanto tempo sem comida e água?
- Disseram que você não se alimenta. É verdade?
- E o relógio? Por que você não se separa de um relógio?
- Como foi viajar pelas estrelas?
- Me desculpem, mas eu preciso fazer um apelo à humanidade.
- Apelo? Depois o senhor faz. Responda primeiro às nossas perguntas.
- Eu preciso contar a todos o que eu vi. É muito importante.
- Haverá muito tempo para isso. As autoridades estão preparando para amanhã a ocasião para que você dê uma declaração pública, que será em praça pública e transmitida para todo o mundo. Mas antes nos responda!
- As autoridades, sempre as autoridades! Por que não me deixam falar logo de uma vez! Começo a duvidar de que as autoridades estejam sendo sinceras.
- Você acabou de sair da quarentena. Depois dessa entrevista, você terá sua chance de falar o que você bem entender para a humanidade. Por isso, conte-nos agora como foi sua viagem pelo espaço. Além do mais, tudo o que você disser será publicado e televisionado!
- Você disse tudo o que eu falar será publicado e televisionado?
- Sim. E ao vivo!
- Bom, então eu respondo. O que vocês querem saber?
- Tudo. Tim-tim por tim-tim.
- Então, sou todo ouvidos.
- Desde que voltou ao planeta Terra, você se tornou muito famoso. O que você acha das pessoas que se manifestaram por sua liberdade.
- Eu queria agradecê-las.
- Sim, você é muito popular, pensa em se candidatar a algum cargo político?
- Não, de modo algum!
- Desculpa-me, mas farei uma pergunta um pouco indelicada. Você é mesmo um ser humano?
- Em partes. Depende do que você entende por ser humano. O que é um ser humano?
- Como assim, o que é um ser humano? Um ser humano é um ser... é um ser... é um ser humano! Sei lá, um indivíduo pertencente à nossa espécie... Na verdade, gostaria de saber se você é daqui ou se é um alienígena, essas coisas... Você é da Terra, um terráqueo como nós?
- Tudo indica que sim, até que me provem o contrário. Sou um terráqueo, porque nasci na Terra.
- Qual é o seu nome?
- Por favor, sou apenas o Andarilho das Estrelas.
- Andarilhos das Estrelas?!
- Sim. Sou um andarilho, das estrelas.
- Você não tem nome? (Todos riem).
- Não importa, sou o Andarilho das Estrelas apenas. E isso é tudo o que vocês devem saber sobre mim. O Universo é maior.
- Disso ninguém tem dúvidas. (Risos). Como é então lá em cima, no Universo?
- Lá em cima? O entrevistado fez um gesto de incompreensão, e depois acrescentou: O senhor já viu estas fotos coloridas de nebulosas, galáxias, supernovas etc., tiradas por telescópios espaciais?
- Sim.
- Eu diria que é muito mais maravilhoso.
- É mesmo? E o que você viu de tão maravilhoso, exatamente?
- É difícil dizer o que é mais maravilhoso. Tudo é muito bonito. Para não deixar você sem resposta, eu diria que as imensas cataratas de estrelas cadentes são lindas demais. No entanto, como não mencionar a música que toca entre as estrelas ou os versos do multiverso?... Na verdade, é difícil escolher o mais maravilhoso. Lamento, sua pergunta não pode ser respondida.
- Ainda não entendo qual o problema de falar seu nome? Afinal, todos nós queremos chamar você por seu nome!
- Que importa um nome? Eu continuaria o mesmo independente do nome que tenho. Além disso, a minha vida aqui na Terra, como a da maioria das pessoas, sempre foi tão vulgar e encoberta pelo anonimato das multidões, que meu nome é também indiferente. A diferença é que um dia eu deixei nossa querida Terra para viajar pelo espaço sideral. Então eu me tornei um andarilho, errando pelas estrelas do Universo. Vejam bem, por que vocês jornalistas, ciosos que são, estão me entrevistando? Qual o interesse das emissoras de televisão, que pagam os seus salários, senão fatos? Não é sobre mim que vocês querem saber. É sobre o Universo. Sinceramente, a vida banal de um cidadão comum não vende jornais.
- Antes dessa sua viagem espacial, você já havia viajado muito por outros lugares do mundo?
- Não. Nunca saí de minha cidade.
Todos os jornalistas, que eram centenas, se admiraram com essa resposta.
- Nunca saiu de sua cidade?
- Nunca.
- E por que saiu do planeta?
Essa pergunta provocou risos também.
- Porque eu quis abstrair de mim a minha humanidade, ou melhor, quis me tornar abstrato.
A resposta do Andarilho das Estrelas provocou uma reação de surpresa e incompreensão.
- Me perdoa, mas não entendi o que você quis dizer. Como assim, se tornar abstrato? Isso não faz sentido. Em primeiro lugar, o que você entende por “abstrato”?
- Ora, o sentido que se dá a palavra abstração, isto é, um elemento reduzido, separado, e que é generalizado.
- O quê? Por favor, explique melhor, está muito confuso.
- Significa abstrair de uma abstração...
O embaraço aumentava conforme o Andarilho das Estrelas respondia as questões dos jornalistas ávidos por notícias e não por respostas demasiadamente vagas. Afinal, quem é este Andarilho das Estrelas? Ele esteve onde nunca nenhum outro ser humano sonhou um dia chegar e ainda assim não sabemos nada sobre ele, nem o seu nome. Depois justifica uma viagem sem precedentes históricos e de proporção interplanetária com uma explicação, no mínimo, sem sentido!
 Analisemos mais detidamente a fisionomia desse estranho personagem para ver se descobrimos algum traço notável de sua personalidade. Aparentemente, nada indica algo incomum nele. Porém, se prestarmos bastante atenção em seu olhar... No seu olhar pode se observar alguma coisa do Universo, um pouco do brilho das estrelas, uma substância, talvez, de origem melancólica, o próprio éter, cuja essência infinita é o imponderável.
De fato, nenhum dos jornalistas duvidava de sua jornada no espaço; sobretudo, quando os telescópios detectaram sua presença no limiar do sistema solar em rota direta de colisão com a Terra. Notícia alarmante, que provocou verdadeiro pavor, porque o Andarilho das Estrelas foi inicialmente confundido com um asteroide. Quando, entretanto, os astrônomos declararam que o corpo celeste detectado não era senão um corpo humano, o mundo então respirou aliviado. Na ocasião, inclusive, um cientista saiu de um observatório dançando e pulando tão enlouquecido, que acabou por cair em um bueiro de esgoto que alguém imprudentemente esqueceu aberto. Para sua felicidade, os ferimentos foram leves. Mas passado o susto inicial da confusão com um asteroide, o mundo inteiro se perguntava intrigado como podia um ser humano estar nos limites do sistema solar. As hipóteses se multiplicavam. Alguns questionavam, não sem fundamentos, se o Andarilho das Estrelas não seria antes um extraterrestre. Alarmados, outros anunciaram uma invasão alienígena iminente. E os adeptos das teorias da conspiração afirmavam que o caso expunha provas concretas de um experimento científico realizado com cobaias humanas lançadas ao espaço e desenvolvido por organizações que almejavam dominar o mundo. Logo, sabichões de todos os cantos do planeta se reuniram emergencialmente num congresso internacional onde passaram a discutir e analisar as evidências por dias a fio. Por fim, vieram a publico apresentar suas conclusões. Declaravam que, em primeiro lugar, “o objeto espacial que se localiza nos confins do sistema solar é realmente um ser humano do gênero e da espécie homo sapiens sapiens e, em segundo lugar, “que ignoravam completamente como um indivíduo da referida espécie havia parado num ambiente inapropriado à vida humana”.
Ao se aproximar o Andarilho das Estrelas da estratosfera terrestre, o resgate não podia causar mais comoção. Maravilhado, o mundo inteiro parou para assisti-lo entrar na Terra como uma estrela cadente, riscando o céu de ponta a ponta num rastro luminoso para, em seguida, descer suavemente no mar. A operação de busca, que se procedeu, assemelhou-se a uma verdadeira mobilização de guerra. Nunca se viu tantos helicópteros, jatos, tanques, navios porta-aviões e tantas outras geringonças juntas rumando para um só lugar. As emissoras de televisão suspenderam toda a programação diária para noticiar integralmente o acontecimento extraordinário. Nos telejornais, os repórteres relatavam o sucedido: “Nesta manhã, o homem que estava no espaço aterrissou sem maiores transtornos no meio do oceano Pacífico e foi resgatado para a terra em segurança”. Outros reportavam a seu estado de saúde: “O homem do espaço passa bem, apesar de visivelmente abatido”. E alguns descreviam sua aparência: “Ele tem barbas longas, cabelos compridos e desgrenhados, roupas puídas e rasgadas... mais parece um náufrago, um náufrago das estrelas”. Notícias como essas se intercalavam ao longo das horas, ininterruptamente, e, no dia seguinte, a humanidade ainda estava de ressaca pelos acontecimentos da véspera. Finalmente, a fisionomia do Andarilho das Estrelas, com expressão assustada e olhos esbugalhados, estampou, numa foto memorável, a primeira página dos grandes jornais do mundo inteiro. 
Neste ínterim, uma agência secreta de algum governo deteve o Andarilho das Estrelas e o transportou para uma dessas bases ainda mais secretas, onde o submeteram a intenso interrogatório. De acordo com informações extraoficiais, o viajante espacial portava consigo apenas uma bagagem de mão, com alguns pertences pessoais, como um livro, um caderno, um espelho, uma lanterna, uma caneta e uma bituca de cigarro, além de uma estranha máquina portátil, construída com uma tecnologia desconhecida, e que foram expostos a testes de radiação. Depois disso, durante dias não se teve notícias dele. E as pessoas movidas, talvez, pela curiosidade, passaram a se interrogar por que o prenderam e não o soltavam. Nas ruas, na linha de produção, nos escritórios, nas escolas, nos botecos, nos restaurantes, nas casernas, enfim, na sala de jantar, todos queriam saber do paradeiro daquele que ocupou por um curto lapso de tempo a atenção do planeta. Mesmo diante de tanta repercussão, a tal agência secreta mostrava-se irredutível à opinião pública e sonegava a menor informação. Entretanto, estava em andamento um fenômeno sociológico inexplicável – do qual será explicitado adiante – que foi decisivo para a libertação condicional do Andarilho das Estrelas. Aliás, decisão bastante ardilosa, pois, diante do silêncio do prisioneiro, a agência secreta poderia obter as informações, por meio da imprensa e de uma declaração pública, desejada pelo próprio Andarilho das Estrelas, que em vão tentavam pela força.
E aqui chegamos ao salão azul, com uma porta cor de abóbora e sem janelas, de onde, como vimos, transcorria a coletiva de imprensa. Quando os jornalistas foram finalmente autorizados a entrevistar o Andarilho das Estrelas, houve um verdadeiro frenesi, semelhante a estas liquidações de começo de ano. Jornalistas, cinegrafistas, fotógrafos e outros profissionais de imprensa corriam freneticamente carregados de uma parafernália de equipamentos, fios, microfones, pelos corredores de acesso ao referido salão. É bem verdade também que o local escolhido para a entrevista era completamente inadequado, pela ausência de ventilação. Mal cabia tanta gente lá dentro, que, devido à superlotação, ficava apertado, apesar de amplo. Muitas discussões tomaram lugar, pois os jornalistas disputavam cadeiras, e, na falta delas, sentavam no chão. Não foram poucas as pessoas que passaram mal, sufocadas. Houve ainda quem foi nocauteado durante o tumulto, provavelmente, por um microfone afoito. Além disso, os jornalistas reclamavam, às vezes, aos gritos, do tratamento concedido à imprensa, alegando que as autoridades agiam intencionalmente com extrema truculência no intuito impedir a livre balbúrdia informativa. Ou seja, denunciavam um flagrante desrespeito à liberdade de expressão. Fato que foi amplamente desmentido pelas mesmas autoridades! Para complicar ainda mais a situação já complicada, um dos jornalistas ouviu, segundo ele próprio, de uma de suas fontes, um funcionário do governo, que o Andarilho das Estrelas não era humano. Informação que surtiu o efeito de um verdadeiro estouro de boiada, tumultuando ainda mais as condições em si caóticas. Lá dentro, todos falavam ao mesmo tempo, e foi muito difícil estabelecer o silêncio no local. Jornalistas foram retirados à força por apresentarem conduta inadequada, de acordo com nota divulgada pela organização da coletiva de imprensa. Outros caíram e foram pisoteados. Alguém desacatou alguma autoridade e foi preso. Quando, na medida do possível, a confusão foi finalmente contida, o Andarilho das Estrelas foi conduzido até o centro de uma mesa coberta por microfones. Quase não se via seu rosto, a essa altura barbeado e com os cabelos raspados, atrás de uma pilha de microfones amontoados. Ao seu lado, sentaram-se os famigerados agentes secretos, todos vestidos de modo idêntico, com terno preto, gravata preta e óculos escuros. Enfim, deram início à entrevista. As primeiras palavras do viajante espacial foram impactantes. Disse ele calmamente: “Bom dia a todos. Eu viajei por todos os rincões deste Universo; travei contato com seres obscuros, muito embora conheci civilizações que fazem da humanidade parecer um formigueiro de formigas desmioladas!” Foi uma algazarra total, os repórteres gritavam: “Conte-nos sobre eles!”; “Eu quero saber!”; “Como eles eram?”, “Se parecem conosco?” etc., etc., etc.
Mas deixemos a coletiva de imprensa por enquanto. Nada se compara ao caos que tomou lugar nas ruas durante o período de “quarentena” e que denominamos de “fenômeno sociológico inexplicável”. Diante do mal-estar causado pelo episódio relatado anteriormente ao parágrafo acima, pessoas que não se conheciam passaram a se reunir em grupos manifestando repúdio à prisão do Andarilho das Estrelas, considerada, por elas, “arbitrária, ilegal e um atentado aos direitos individuais da pessoa humana”, exigindo assim a soltura imediata do prisioneiro. A princípio, era apenas meia dúzia mas, com o passar dos dias e por meio das redes sociais de computadores conectados à internet, tornou-se uma bola de neve. Em pouco tempo, se formou uma grande multidão, munida de cartazes, bandeiras, faixas, a entoar canções de guerra, gritos de ordem, que se espalhou pelas ruas como uma epidemia incontrolável. Assembleias eram organizadas nas ruas, ocasião em que oradores de plantão, sob aplausos intensos, incendiavam os ânimos já bastante exaltados. Anônimos viraram celebridades de um dia para outro e concediam, envaidecidos, entrevistas para a televisão, embora muito poucos expusessem argumentos dignos de nota. Nessa toada, porém, o movimento só crescia e depois de muitos debates, os manifestantes decidiram se agrupar diante das sedes dos principais governos envolvidos com a operação de resgate e lá permaneceram acampados. À medida que o tempo passava, sem o menor sinal de boa vontade das autoridades responsáveis, que fingiam nada acontecer e, por isso, não aceitavam discutir uma saída para o impasse, as circunstâncias se tornaram mais e mais críticas e os protestos, violentos. Mascarados ateavam fogo no que encontravam e jogavam pedras nas forças de segurança, acionadas para conter os excessos e atos de vandalismo. Não foi suficiente, pois estas tiveram de recuar muitas vezes. E assim, os confrontos se repetiram por dias seguidos. De um lado, bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta, tiros de bala de borracha; e, de outro, paus, pedras, fogo, gritos. Surgiram então os heróis e mártires da repressão. Milagrosamente, apesar da intensidade dos conflitos, ninguém se feriu gravemente.
Por algum mistério, a prisão injustificada do viajante das estrelas serviu de pretexto para aflorar uma grande insatisfação em todos os habitantes do globo terrestre. É bastante provável que aquelas pessoas queriam ouvi-lo e, frustradas com os episódios que se seguiram, sentiram-se afrontadas mais uma vez perante a insolência de uma minoria que toma decisões independentemente da consulta de todos. Porém, não parou por aí. Outros agrupamentos, de pessoas aparentemente indiferentes a demandas relativas à liberdade civil, mas contagiadas pelo calor das passeatas, passaram a caminhar a esmo, arrebanhando outros grupos, que se somavam por onde passavam. De repente, milhares se uniam descontentes com as mazelas do cotidiano e apresentavam uma série de reivindicações contra a carestia, o aumento das passagens de ônibus, a inflação, as péssimas condições da saúde pública etc. Imagens aéreas captavam cenas impressionantes de um mundo de gente avançando como um tsunami em direção das grandes capitais. Um pequeno incidente, definido, talvez, como de segurança nacional ou mundial, transformou-se numa avalanche de revoltas pelo mundo afora. Os governos, surpreendidos, foram obrigados abrir negociações com os líderes dos protestos e deliberaram a libertação do Andarilho das Estrelas e mais a promessa de montarem em praça pública um palco onde aquele poderia emitir suas opiniões a respeito de sua jornada interestelar: o seu “apelo à humanidade”. Enfim, as manifestações foram suspensas. Mas ninguém voltou para casa. Um bater de asas de uma borboleta, e eis um furacão. De fato, e é até estranho, mas quando o Andarilho das Estrelas se chocou na atmosfera terrestre, iluminando o céu, muita gente, secretamente, fez um pedido...
É neste pé em que estávamos antes de explicar os antecedentes da entrevista que está sendo realizada no salão azul, que, como vocês já sabem, tem uma porta cor de abóbora e nenhuma janela. Mas onde havíamos deixado a entrevista mesmo? Ah, sim, no momento em que o Andarilho das Estrelas dizia que queria se tornar uma abstração. Nada mais intrigante, não? Vamos ouvi-lo:
- Como assim, disse um jornalista, não é possível abstrair a humanidade de um ser humano? A menos que você realmente não seja humano. (Risos).
- Em pensamento é possível sim. Não só em pensamento, mas também no mundo real, dos fatos, como se costuma dizer. Somos reduzidos a abstrações diariamente, separados de nós mesmos, através de algo geral que supostamente nos representa. Pode ser uma senha, um número, um registro, uma assinatura, um nome. Tudo no nosso mundo é organizado por noções abstratas e gerais, como o tempo, as normas, os códigos, os prazos, que enchem as nossas cabeças e os papéis nas escrivaninhas. Isto quando não somos apenas estatísticas nos indicadores sociais. Nossa vida inteira é apagada, substituída e representada por uma realidade imaterial mais importante que nossa própria vida! E daí aquilo que parece verdade é dissimulado e falso, porém, efetivo. Então, eu pergunto: o que é ser ser humano ou o que é o humano? Para encurtar a história, eu não sou um ser humano completamente!
- Ah, então você realmente é um ET? Eu sabia!
            - Não, também não sou um ET, porque nasci na Terra e, tecnicamente falando, parceiro, quem nasce na Terra não pode ser umextraterrestre. Vou tentar me fazer entender. Há milhares de anos, os nômades costumavam olhar o céu e sabiam o momento da noite em que caem mais estrelas-cadentes. Também seguiam a rota sinuosa dos planetas e quando a posição de uma constelação significava o dia da partida. Os agricultores, da mesma forma, também conheciam o céu que comunicava a estação do plantio ou da colheita. Ao contrário, hoje, jamais olhamos o céu – poluído, por sinal. Por isso, decidi partir. Queria ver as estrelas de perto, a Lua, os planetas... Então, na verdade, eu me abstraí de minha humanidade abstrata para descobrir se havia alguma coisa real em mim.
- Profundo, mas não entendi nada. (Risos) Você está criticando a modernidade, quer voltar para trás, é isso?
- Não. Na verdade, ir para frente é voltar para trás, descobrir o passado é engendrar o futuro. Por isso, antes de partir, eu sentia uma profunda insatisfação com o mundo do jeito que ele é. Para renunciar totalmente à minha humanidade, eu precisava abdicar totalmente da minha existência no planeta Terra; não da minha vida.
- O que você está querendo nos dizer? Por favor, seja menos evasivo.
- Está bem, preste atenção! O mundo parou para assistir a minha chegada ao planeta Terra, não é? (Eu não esperava tanto, se bem que devo admitir que as pessoas adoram uma novidade). Contudo, quem se preocupa ou muda sua rotina com a notícia de mais uma guerra ou da fome de milhares de seres humanos pelo mundo? Nem parece que todas essas coisas acontecem com nossos vizinhos. Parece mais uma realidade de outro mundo, distante de nós. Tudo é tão banalizado e abstrato. Temos até tribunais para julgar crimes de guerra quando, na verdade, não há guerra que não seja um crime contra a humanidade!
- Não sei se o compreendi. Mas me parece que você é um pacifista.
- Não! Não exatamente. Eu já fui um soldado. Já estive em um campo de batalha.
            - Então você já atirou em alguém?!
- Não de verdade. No mundo em que lutei, as armas não eram letais.
- E quando e como você decidiu ir embora do planeta Terra?
- Como um nômade, eu passava horas à noite olhando o céu, e ficava imaginando – ao andar parado – se numa daquelas estrelinhas não haveria um mundo habitado por criaturas solidárias e que cuidassem melhor de seu planeta. E eu sonhava. E um sonho surgiu na minha frente. Vocês sabem que sonho pode significar duas coisas, não é? Sonho pode ser uma manifestação psíquica inconsciente que ocorre durante o sono. Aqui, sonho é uma ilusão, química. Mas sonho pode ser também um desejo forte, consciente. Aqui, o sonho é uma ilusão diferente, porque pode se realizar. Então, eu vi um sonho chegar ao se tornar real numa viagem intergalática. Não seria fácil, e, a bem dizer, talvez um empreendimento suicida. Passei meses me preparando para partir. Então, uma data foi marcada, no mês de junho, porque o céu fica mais bonito no hemisfério sul. E conforme os dias foram passando e a data se aproximando bem perto de mim, eu fiquei diante de um dilema, pois não podia me despedir de ninguém, senão não me deixariam prosseguir. No dia marcado, eu fiquei triste feliz. Achei que seria bastante conveniente me despedir apenas das coisas e dos animais. Dei um abraço apertado em minha máquina de lavar roupas: “Vou sentir sua falta”, disse-lhe. Depois foi a vez da geladeira: Lágrimas congelantes! E aí fui para o meu quarto e disse adeus para minha cama, meu travesseiro e, confesso, com a condição de vocês não publicarem, para o meu hipopótamo de pelúcia! Também disse tchau para as poltronas, as estantes e o abajur. Em seguida, fui para o jardim e me despedi dos gatos, do cachorro, da galinha e até dos insetos. Enfim, das flores, plantas e árvores. Gostaria, no entanto, que vocês registrassem alguns momentos marcantes: A minha gata Deúda parecia um motorzinho se entrelaçando em minhas pernas, talvez, tentando me convencer a ficar. Ao me deitar na grama, olhei os flocos de nuvens brancas no céu azul e vi minha mão, meu antebraço e braço se ergueram acenando. Também fiz um sinal para um gafanhoto, dizendo: “Soldado, foi um prazer conhecê-lo!” Uma formiga subiu no meu nariz e eu sorri para ela. (Não posso afirmar se ela sorriu para mim, porque não entendo muito de boca de formiga). Um tatu-bolinha gesticulava suas patinhas, que são dezenas – algo que me tocou muito, pela sua veemência. Mas o que mais me partiu o coração foi o meu cachorro Foluke que não tirou seus olhinhos de mim até eu desaparecer totalmente no ar. “Vou sentir saudades, amigão!” gritei lá de cima.
            Tudo isso pode parecer muito bizarro e se alguém me contasse eu juro que não acreditaria... mas se eu não tivesse presenciado todos estes acontecimentos! Eu me lembro de cada detalhe, desde as primeiras notícias nos jornais, à descida do Andarilho das Estrelas, de sua prisão, dos protestos. Fui testemunha, com os olhos de meus próprios pés! E mal posso esperar para assistir seu depoimento na praça da cidade. Antes é preciso esperar a entrevista terminar. Ah, sim, os repórteres, eles ainda fazem perguntas. Não os atrapalhemos!
- Mais uma pergunta!
- Andarilho das Estrelas, como você...
- Diga como você fez...
- E por quê...?
- Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!...
Neste instante, o Andarilho das Estrelas subitamente parou de falar. Seu olhar atravessara as paredes atrás de suas memórias. Estava longe, muito longe. Ao notarem essa atitude estranha e imprevisível, os jornalistas também se calaram. Uma cena que poderia ser retratada por um pintor de tão estática. O silêncio se arrastava e a situação permaneceu assim por não sei quanto tempo até que os jornalistas incomodados com a falta de informações esboçaram uma reação no sentido de retomarem a carga de perguntas. Não demorou muito para que conversas paralelas, sugerindo interrogação e perplexidade, fossem aos poucos cochichadas no salão. Olhares se encontravam, boquiabertos. Então, um dos jornalistas passou a falar em voz alta, mostrando-se bastante impaciente e, irritado com as condições precárias da coletiva de imprensa, passou a se queixar abertamente dos organizadores. Tal agitação causou certa preocupação aos agentes secretos. Esses se entreolhavam estrategicamente, fazendo sinais táticos, uns para os outros, com cotoveladas significativas e pisadas em toques no pé ou na canela do colega vizinho, indicando, porém, que a situação ainda estava sob controle. Mas diante do burburinho nervoso que se avolumava, um dos agentes secretos, muito provavelmente o comandante, tomou a palavra e solicitou encarecidamente aos repórteres que permanecessem em seus lugares. Em vão. Alguns jornalistas já circulavam livremente pelo salão falando ao telefone celular. Nada, porém, tirava o Andarilho das Estrelas de suas meditações. Por sua vez, os repórteres comentavam ou davam risadas da circunstância um tanto inédita, enquanto fotógrafos tiravam fotos dos mais diversos ângulos. Já os agentes secretos, prevendo que seria impossível segurar um tumulto dentro do salão, passaram a gesticular energicamente os braços, com os quais faziam movimentos variados, ao mesmo tempo em que levantavam os óculos e piscavam os olhos num tipo de código Morse, avisando que chegava o momento de bater em retirada. Tudo indicava problemas à vista. Felizmente, o Andarilho das Estrelas saiu de sua letargia momentânea, arregalou bem os olhos, que se fixaram nos jornalistas, e em seguida ensaiou dizer alguma palavra que não saía. Diante disso, os jornalistas caíram paralisados sobre suas cadeiras como se tivessem sido atingidos pelo olhar petrificante de um górgona.
O que será que está acontecendo?!


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