PARTE 1
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um amplo salão
azul, de uma única porta cor de abóbora e nenhuma janela, muitos jornalistas se
amontoavam.
- Por favor, conte-nos como foi sua viagem ao espaço?
- Diga-nos como ficou tanto tempo sem comida e água?
- Disseram que você não se alimenta. É verdade?
- E o relógio? Por que você não se separa de um relógio?
- Como foi viajar pelas estrelas?
- Me desculpem, mas eu preciso fazer um apelo à humanidade.
- Apelo? Depois o senhor faz. Responda primeiro às nossas perguntas.
- Eu preciso contar a todos o que eu vi. É muito importante.
- Haverá muito tempo para isso. As autoridades estão preparando para
amanhã a ocasião para que você dê uma declaração pública, que será em praça
pública e transmitida para todo o mundo. Mas antes nos responda!
- As autoridades, sempre as autoridades! Por que não me deixam falar
logo de uma vez! Começo a duvidar de que as autoridades estejam sendo sinceras.
- Você acabou de sair da quarentena. Depois dessa entrevista, você terá
sua chance de falar o que você bem entender para a humanidade. Por isso,
conte-nos agora como foi sua viagem pelo espaço. Além do mais, tudo o que você
disser será publicado e televisionado!
- Você disse tudo o que eu falar será publicado e televisionado?
- Sim. E ao vivo!
- Bom, então eu respondo. O que vocês querem saber?
- Tudo. Tim-tim por tim-tim.
- Então, sou todo ouvidos.
- Desde que voltou ao planeta Terra, você se tornou muito famoso. O que
você acha das pessoas que se manifestaram por sua liberdade.
- Eu queria agradecê-las.
- Sim, você é muito popular, pensa em se candidatar a algum cargo
político?
- Não, de modo algum!
- Desculpa-me, mas farei uma pergunta um pouco indelicada. Você é mesmo
um ser humano?
- Em partes. Depende do que você entende por ser humano. O que é um ser
humano?
- Como assim, o que é um ser humano? Um ser humano é um ser... é um
ser... é um ser humano! Sei lá, um indivíduo pertencente à nossa espécie... Na
verdade, gostaria de saber se você é daqui ou se é um alienígena, essas
coisas... Você é da Terra, um terráqueo como nós?
- Tudo indica que sim, até que me provem o contrário. Sou um terráqueo,
porque nasci na Terra.
- Qual é o seu nome?
- Por favor, sou apenas o Andarilho das Estrelas.
- Andarilhos das Estrelas?!
- Sim. Sou um andarilho, das estrelas.
- Você não tem nome? (Todos riem).
- Não importa, sou o Andarilho das Estrelas apenas. E isso é tudo o que
vocês devem saber sobre mim. O Universo é maior.
- Disso ninguém tem dúvidas. (Risos). Como é então lá em cima, no
Universo?
- Lá em cima? O entrevistado fez um gesto de incompreensão, e depois
acrescentou: O senhor já viu estas fotos coloridas de nebulosas, galáxias,
supernovas etc., tiradas por telescópios espaciais?
- Sim.
- Eu diria que é muito mais maravilhoso.
- É mesmo? E o que você viu de tão maravilhoso, exatamente?
- É difícil dizer o que é mais maravilhoso. Tudo é muito bonito. Para
não deixar você sem resposta, eu diria que as imensas cataratas de estrelas
cadentes são lindas demais. No entanto, como não mencionar a música que toca
entre as estrelas ou os versos do multiverso?... Na verdade, é difícil escolher
o mais maravilhoso. Lamento, sua pergunta não pode ser respondida.
- Ainda não entendo qual o problema de falar seu nome? Afinal, todos nós
queremos chamar você por seu nome!
- Que importa um nome? Eu continuaria o mesmo independente do nome que
tenho. Além disso, a minha vida aqui na Terra, como a da maioria das pessoas,
sempre foi tão vulgar e encoberta pelo anonimato das multidões, que meu nome é
também indiferente. A diferença é que um dia eu deixei nossa querida Terra para
viajar pelo espaço sideral. Então eu me tornei um andarilho, errando pelas
estrelas do Universo. Vejam bem, por que vocês jornalistas, ciosos que são,
estão me entrevistando? Qual o interesse das emissoras de televisão, que pagam
os seus salários, senão fatos? Não é sobre mim que vocês querem saber. É sobre
o Universo. Sinceramente, a vida banal de um cidadão comum não vende jornais.
- Antes dessa sua viagem espacial, você já havia viajado muito por
outros lugares do mundo?
- Não. Nunca saí de minha cidade.
Todos os jornalistas, que eram centenas, se admiraram com essa resposta.
- Nunca saiu de sua cidade?
- Nunca.
- E por que saiu do planeta?
Essa pergunta provocou risos também.
- Porque eu quis abstrair de mim a minha humanidade, ou melhor, quis me
tornar abstrato.
A resposta do Andarilho das Estrelas provocou uma reação de surpresa e incompreensão.
- Me perdoa, mas não entendi o que você quis dizer. Como assim, se
tornar abstrato? Isso não faz sentido. Em primeiro lugar, o que você entende
por “abstrato”?
- Ora, o sentido que se dá a palavra abstração, isto é, um elemento
reduzido, separado, e que é generalizado.
- O quê? Por favor, explique melhor, está muito confuso.
- Significa abstrair de uma abstração...
O embaraço aumentava conforme o Andarilho das Estrelas respondia as
questões dos jornalistas ávidos por notícias e não por respostas demasiadamente
vagas. Afinal, quem é este Andarilho das Estrelas? Ele esteve onde nunca nenhum
outro ser humano sonhou um dia chegar e ainda assim não sabemos nada sobre ele,
nem o seu nome. Depois justifica uma viagem sem precedentes históricos e de proporção
interplanetária com uma explicação, no mínimo, sem sentido!
Analisemos mais detidamente a fisionomia desse estranho personagem
para ver se descobrimos algum traço notável de sua personalidade.
Aparentemente, nada indica algo incomum nele. Porém, se prestarmos bastante
atenção em seu olhar... No seu olhar pode se observar alguma coisa do Universo,
um pouco do brilho das estrelas, uma substância, talvez, de origem melancólica,
o próprio éter, cuja essência infinita é o imponderável.
De fato, nenhum dos jornalistas duvidava de sua jornada no espaço;
sobretudo, quando os telescópios detectaram sua presença no limiar do sistema
solar em rota direta de colisão com a Terra. Notícia alarmante, que provocou
verdadeiro pavor, porque o Andarilho das Estrelas foi inicialmente confundido
com um asteroide. Quando, entretanto, os astrônomos declararam que o corpo
celeste detectado não era senão um corpo humano, o mundo então respirou
aliviado. Na ocasião, inclusive, um cientista saiu de um observatório dançando
e pulando tão enlouquecido, que acabou por cair em um bueiro de esgoto que
alguém imprudentemente esqueceu aberto. Para sua felicidade, os ferimentos
foram leves. Mas passado o susto inicial da confusão com um asteroide, o mundo
inteiro se perguntava intrigado como podia um ser humano estar nos limites do
sistema solar. As hipóteses se multiplicavam. Alguns questionavam, não sem
fundamentos, se o Andarilho das Estrelas não seria antes um extraterrestre.
Alarmados, outros anunciaram uma invasão alienígena iminente. E os adeptos das
teorias da conspiração afirmavam que o caso expunha provas concretas de um
experimento científico realizado com cobaias humanas lançadas ao espaço e
desenvolvido por organizações que almejavam dominar o mundo. Logo, sabichões de
todos os cantos do planeta se reuniram emergencialmente num congresso
internacional onde passaram a discutir e analisar as evidências por dias a fio.
Por fim, vieram a publico apresentar suas conclusões. Declaravam que, em
primeiro lugar, “o objeto espacial que se localiza nos confins do sistema solar
é realmente um ser humano do gênero e da espécie homo sapiens sapiens” e,
em segundo lugar, “que ignoravam completamente como um indivíduo da referida
espécie havia parado num ambiente inapropriado à vida humana”.
Ao se aproximar o Andarilho das Estrelas da estratosfera terrestre, o
resgate não podia causar mais comoção. Maravilhado, o mundo inteiro parou para
assisti-lo entrar na Terra como uma estrela cadente, riscando o céu de ponta a
ponta num rastro luminoso para, em seguida, descer suavemente no mar. A
operação de busca, que se procedeu, assemelhou-se a uma verdadeira mobilização
de guerra. Nunca se viu tantos helicópteros, jatos, tanques, navios
porta-aviões e tantas outras geringonças juntas rumando para um só lugar. As
emissoras de televisão suspenderam toda a programação diária para noticiar
integralmente o acontecimento extraordinário. Nos telejornais, os repórteres
relatavam o sucedido: “Nesta manhã, o homem que estava no espaço aterrissou sem
maiores transtornos no meio do oceano Pacífico e foi resgatado para a terra em
segurança”. Outros reportavam a seu estado de saúde: “O homem do espaço passa
bem, apesar de visivelmente abatido”. E alguns descreviam sua aparência: “Ele
tem barbas longas, cabelos compridos e desgrenhados, roupas puídas e
rasgadas... mais parece um náufrago, um náufrago das estrelas”. Notícias como
essas se intercalavam ao longo das horas, ininterruptamente, e, no dia
seguinte, a humanidade ainda estava de ressaca pelos acontecimentos da véspera.
Finalmente, a fisionomia do Andarilho das Estrelas, com expressão assustada e
olhos esbugalhados, estampou, numa foto memorável, a primeira página dos
grandes jornais do mundo inteiro.
Neste ínterim, uma agência secreta de algum governo deteve o Andarilho
das Estrelas e o transportou para uma dessas bases ainda mais secretas, onde o
submeteram a intenso interrogatório. De acordo com informações extraoficiais, o
viajante espacial portava consigo apenas uma bagagem de mão, com alguns
pertences pessoais, como um livro, um caderno, um espelho, uma lanterna, uma
caneta e uma bituca de cigarro, além de uma estranha máquina portátil,
construída com uma tecnologia desconhecida, e que foram expostos a testes de
radiação. Depois disso, durante dias não se teve notícias dele. E as pessoas
movidas, talvez, pela curiosidade, passaram a se interrogar por que o prenderam
e não o soltavam. Nas ruas, na linha de produção, nos escritórios, nas escolas,
nos botecos, nos restaurantes, nas casernas, enfim, na sala de jantar, todos
queriam saber do paradeiro daquele que ocupou por um curto lapso de tempo a
atenção do planeta. Mesmo diante de tanta repercussão, a tal agência secreta
mostrava-se irredutível à opinião pública e sonegava a menor informação.
Entretanto, estava em andamento um fenômeno sociológico inexplicável – do qual
será explicitado adiante – que foi decisivo para a libertação condicional do
Andarilho das Estrelas. Aliás, decisão bastante ardilosa, pois, diante do
silêncio do prisioneiro, a agência secreta poderia obter as informações, por
meio da imprensa e de uma declaração pública, desejada pelo próprio Andarilho
das Estrelas, que em vão tentavam pela força.
E aqui chegamos ao salão azul, com uma porta cor de abóbora e sem
janelas, de onde, como vimos, transcorria a coletiva de imprensa. Quando os
jornalistas foram finalmente autorizados a entrevistar o Andarilho das
Estrelas, houve um verdadeiro frenesi, semelhante a estas liquidações de começo
de ano. Jornalistas, cinegrafistas, fotógrafos e outros profissionais de
imprensa corriam freneticamente carregados de uma parafernália de equipamentos,
fios, microfones, pelos corredores de acesso ao referido salão. É bem verdade
também que o local escolhido para a entrevista era completamente inadequado,
pela ausência de ventilação. Mal cabia tanta gente lá dentro, que, devido à
superlotação, ficava apertado, apesar de amplo. Muitas discussões tomaram
lugar, pois os jornalistas disputavam cadeiras, e, na falta delas, sentavam no
chão. Não foram poucas as pessoas que passaram mal, sufocadas. Houve ainda quem
foi nocauteado durante o tumulto, provavelmente, por um microfone afoito. Além
disso, os jornalistas reclamavam, às vezes, aos gritos, do tratamento concedido
à imprensa, alegando que as autoridades agiam intencionalmente com extrema
truculência no intuito impedir a livre balbúrdia informativa. Ou seja,
denunciavam um flagrante desrespeito à liberdade de expressão. Fato que foi
amplamente desmentido pelas mesmas autoridades! Para complicar ainda mais a
situação já complicada, um dos jornalistas ouviu, segundo ele próprio, de uma
de suas fontes, um funcionário do governo, que o Andarilho das Estrelas não era
humano. Informação que surtiu o efeito de um verdadeiro estouro de boiada,
tumultuando ainda mais as condições em si caóticas. Lá dentro, todos falavam ao
mesmo tempo, e foi muito difícil estabelecer o silêncio no local. Jornalistas
foram retirados à força por apresentarem conduta inadequada, de acordo com nota
divulgada pela organização da coletiva de imprensa. Outros caíram e foram
pisoteados. Alguém desacatou alguma autoridade e foi preso. Quando, na medida
do possível, a confusão foi finalmente contida, o Andarilho das Estrelas foi
conduzido até o centro de uma mesa coberta por microfones. Quase não se via seu
rosto, a essa altura barbeado e com os cabelos raspados, atrás de uma pilha de
microfones amontoados. Ao seu lado, sentaram-se os famigerados agentes
secretos, todos vestidos de modo idêntico, com terno preto, gravata preta e
óculos escuros. Enfim, deram início à entrevista. As primeiras palavras do
viajante espacial foram impactantes. Disse ele calmamente: “Bom dia a todos. Eu
viajei por todos os rincões deste Universo; travei contato com seres obscuros,
muito embora conheci civilizações que fazem da humanidade parecer um
formigueiro de formigas desmioladas!” Foi uma algazarra total, os repórteres
gritavam: “Conte-nos sobre eles!”; “Eu quero saber!”; “Como eles eram?”, “Se
parecem conosco?” etc., etc., etc.
Mas deixemos a coletiva de imprensa por enquanto. Nada se compara ao
caos que tomou lugar nas ruas durante o período de “quarentena” e que
denominamos de “fenômeno sociológico inexplicável”. Diante do mal-estar causado
pelo episódio relatado anteriormente ao parágrafo acima, pessoas que não se
conheciam passaram a se reunir em grupos manifestando repúdio à prisão do
Andarilho das Estrelas, considerada, por elas, “arbitrária, ilegal e um
atentado aos direitos individuais da pessoa humana”, exigindo assim a soltura
imediata do prisioneiro. A princípio, era apenas meia dúzia mas, com o passar
dos dias e por meio das redes sociais de computadores conectados à internet,
tornou-se uma bola de neve. Em pouco tempo, se formou uma grande multidão,
munida de cartazes, bandeiras, faixas, a entoar canções de guerra, gritos de
ordem, que se espalhou pelas ruas como uma epidemia incontrolável. Assembleias
eram organizadas nas ruas, ocasião em que oradores de plantão, sob aplausos
intensos, incendiavam os ânimos já bastante exaltados. Anônimos viraram
celebridades de um dia para outro e concediam, envaidecidos, entrevistas para a
televisão, embora muito poucos expusessem argumentos dignos de nota. Nessa
toada, porém, o movimento só crescia e depois de muitos debates, os
manifestantes decidiram se agrupar diante das sedes dos principais governos
envolvidos com a operação de resgate e lá permaneceram acampados. À medida que
o tempo passava, sem o menor sinal de boa vontade das autoridades responsáveis,
que fingiam nada acontecer e, por isso, não aceitavam discutir uma saída para o
impasse, as circunstâncias se tornaram mais e mais críticas e os protestos,
violentos. Mascarados ateavam fogo no que encontravam e jogavam pedras nas
forças de segurança, acionadas para conter os excessos e atos de vandalismo.
Não foi suficiente, pois estas tiveram de recuar muitas vezes. E assim, os
confrontos se repetiram por dias seguidos. De um lado, bombas de gás
lacrimogêneo, gás de pimenta, tiros de bala de borracha; e, de outro, paus,
pedras, fogo, gritos. Surgiram então os heróis e mártires da repressão.
Milagrosamente, apesar da intensidade dos conflitos, ninguém se feriu
gravemente.
Por algum mistério, a prisão injustificada do viajante das estrelas
serviu de pretexto para aflorar uma grande insatisfação em todos os habitantes
do globo terrestre. É bastante provável que aquelas pessoas queriam ouvi-lo e,
frustradas com os episódios que se seguiram, sentiram-se afrontadas mais uma
vez perante a insolência de uma minoria que toma decisões independentemente da
consulta de todos. Porém, não parou por aí. Outros agrupamentos, de pessoas
aparentemente indiferentes a demandas relativas à liberdade civil, mas
contagiadas pelo calor das passeatas, passaram a caminhar a esmo, arrebanhando
outros grupos, que se somavam por onde passavam. De repente, milhares se uniam
descontentes com as mazelas do cotidiano e apresentavam uma série de
reivindicações contra a carestia, o aumento das passagens de ônibus, a
inflação, as péssimas condições da saúde pública etc. Imagens aéreas captavam
cenas impressionantes de um mundo de gente avançando como um tsunami em direção
das grandes capitais. Um pequeno incidente, definido, talvez, como de segurança
nacional ou mundial, transformou-se numa avalanche de revoltas pelo mundo
afora. Os governos, surpreendidos, foram obrigados abrir negociações com os
líderes dos protestos e deliberaram a libertação do Andarilho das Estrelas e
mais a promessa de montarem em praça pública um palco onde aquele poderia
emitir suas opiniões a respeito de sua jornada interestelar: o seu “apelo à
humanidade”. Enfim, as manifestações foram suspensas. Mas ninguém voltou para
casa. Um bater de asas de uma borboleta, e eis um furacão. De fato, e é até
estranho, mas quando o Andarilho das Estrelas se chocou na atmosfera terrestre,
iluminando o céu, muita gente, secretamente, fez um pedido...
É neste pé em que estávamos antes de explicar os antecedentes da
entrevista que está sendo realizada no salão azul, que, como vocês já sabem,
tem uma porta cor de abóbora e nenhuma janela. Mas onde havíamos deixado a
entrevista mesmo? Ah, sim, no momento em que o Andarilho das Estrelas dizia que
queria se tornar uma abstração. Nada mais intrigante, não? Vamos ouvi-lo:
- Como assim, disse um jornalista, não é possível abstrair a humanidade
de um ser humano? A menos que você realmente não seja humano. (Risos).
- Em pensamento é possível sim. Não só em pensamento, mas também no
mundo real, dos fatos, como se costuma dizer. Somos reduzidos a abstrações
diariamente, separados de nós mesmos, através de algo geral que supostamente
nos representa. Pode ser uma senha, um número, um registro, uma assinatura, um
nome. Tudo no nosso mundo é organizado por noções abstratas e gerais, como o
tempo, as normas, os códigos, os prazos, que enchem as nossas cabeças e os
papéis nas escrivaninhas. Isto quando não somos apenas estatísticas nos
indicadores sociais. Nossa vida inteira é apagada, substituída e representada
por uma realidade imaterial mais importante que nossa própria vida! E daí
aquilo que parece verdade é dissimulado e falso, porém, efetivo. Então, eu
pergunto: o que é ser ser humano ou o que é o humano? Para encurtar a história,
eu não sou um ser humano completamente!
- Ah, então você realmente é um ET? Eu sabia!
- Não, também não sou um ET, porque nasci na Terra e, tecnicamente falando,
parceiro, quem nasce na Terra não pode ser umextraterrestre. Vou tentar
me fazer entender. Há milhares de anos, os nômades costumavam olhar o céu e
sabiam o momento da noite em que caem mais estrelas-cadentes. Também seguiam a
rota sinuosa dos planetas e quando a posição de uma constelação significava o
dia da partida. Os agricultores, da mesma forma, também conheciam o céu que
comunicava a estação do plantio ou da colheita. Ao contrário, hoje, jamais
olhamos o céu – poluído, por sinal. Por isso, decidi partir. Queria ver as
estrelas de perto, a Lua, os planetas... Então, na verdade, eu me abstraí de
minha humanidade abstrata para descobrir se havia alguma coisa real em mim.
- Profundo, mas não entendi nada. (Risos) Você está criticando a
modernidade, quer voltar para trás, é isso?
- Não. Na verdade, ir para frente é voltar para trás, descobrir o
passado é engendrar o futuro. Por isso, antes de partir, eu sentia uma profunda
insatisfação com o mundo do jeito que ele é. Para renunciar totalmente à minha
humanidade, eu precisava abdicar totalmente da minha existência no planeta
Terra; não da minha vida.
- O que você está querendo nos dizer? Por favor, seja menos evasivo.
- Está bem, preste atenção! O mundo parou para assistir a minha chegada
ao planeta Terra, não é? (Eu não esperava tanto, se bem que devo admitir que as
pessoas adoram uma novidade). Contudo, quem se preocupa ou muda sua rotina com
a notícia de mais uma guerra ou da fome de milhares de seres humanos pelo
mundo? Nem parece que todas essas coisas acontecem com nossos vizinhos. Parece
mais uma realidade de outro mundo, distante de nós. Tudo é tão banalizado e
abstrato. Temos até tribunais para julgar crimes de guerra quando, na verdade,
não há guerra que não seja um crime contra a humanidade!
- Não sei se o compreendi. Mas me parece que você é um pacifista.
- Não! Não exatamente. Eu já fui um soldado. Já estive em um campo de
batalha.
- Então você já atirou em alguém?!
- Não de verdade. No mundo em que lutei, as armas não eram letais.
- E quando e como você decidiu ir embora do planeta Terra?
- Como um nômade, eu passava horas à noite olhando o céu, e ficava
imaginando – ao andar parado – se numa daquelas estrelinhas não haveria um
mundo habitado por criaturas solidárias e que cuidassem melhor de seu planeta.
E eu sonhava. E um sonho surgiu na minha frente. Vocês sabem que sonho pode
significar duas coisas, não é? Sonho pode ser uma manifestação psíquica
inconsciente que ocorre durante o sono. Aqui, sonho é uma ilusão, química. Mas
sonho pode ser também um desejo forte, consciente. Aqui, o sonho é uma ilusão
diferente, porque pode se realizar. Então, eu vi um sonho chegar ao se tornar
real numa viagem intergalática. Não seria fácil, e, a bem dizer, talvez um
empreendimento suicida. Passei meses me preparando para partir. Então, uma data
foi marcada, no mês de junho, porque o céu fica mais bonito no hemisfério sul.
E conforme os dias foram passando e a data se aproximando bem perto de mim, eu
fiquei diante de um dilema, pois não podia me despedir de ninguém, senão não me
deixariam prosseguir. No dia marcado, eu fiquei triste feliz. Achei que seria
bastante conveniente me despedir apenas das coisas e dos animais. Dei um abraço
apertado em minha máquina de lavar roupas: “Vou sentir sua falta”, disse-lhe.
Depois foi a vez da geladeira: Lágrimas congelantes! E aí fui para o meu quarto
e disse adeus para minha cama, meu travesseiro e, confesso, com a condição de
vocês não publicarem, para o meu hipopótamo de pelúcia! Também disse tchau para
as poltronas, as estantes e o abajur. Em seguida, fui para o jardim e me
despedi dos gatos, do cachorro, da galinha e até dos insetos. Enfim, das
flores, plantas e árvores. Gostaria, no entanto, que vocês registrassem alguns
momentos marcantes: A minha gata Deúda parecia um motorzinho se entrelaçando em
minhas pernas, talvez, tentando me convencer a ficar. Ao me deitar na grama,
olhei os flocos de nuvens brancas no céu azul e vi minha mão, meu antebraço e
braço se ergueram acenando. Também fiz um sinal para um gafanhoto, dizendo:
“Soldado, foi um prazer conhecê-lo!” Uma formiga subiu no meu nariz e eu sorri
para ela. (Não posso afirmar se ela sorriu para mim, porque não entendo muito
de boca de formiga). Um tatu-bolinha gesticulava suas patinhas, que são dezenas
– algo que me tocou muito, pela sua veemência. Mas o que mais me partiu o
coração foi o meu cachorro Foluke que não tirou seus olhinhos de mim até eu
desaparecer totalmente no ar. “Vou sentir saudades, amigão!” gritei lá de cima.
Tudo isso pode parecer muito bizarro e se alguém me contasse eu juro que não
acreditaria... mas se eu não tivesse presenciado todos estes acontecimentos! Eu
me lembro de cada detalhe, desde as primeiras notícias nos jornais, à descida
do Andarilho das Estrelas, de sua prisão, dos protestos. Fui testemunha, com os
olhos de meus próprios pés! E mal posso esperar para assistir seu depoimento na
praça da cidade. Antes é preciso esperar a entrevista terminar. Ah, sim, os
repórteres, eles ainda fazem perguntas. Não os atrapalhemos!
- Mais uma pergunta!
- Andarilho das Estrelas, como você...
- Diga como você fez...
- E por quê...?
- Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!
Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho! Andarilho!...
Neste instante, o Andarilho das Estrelas subitamente parou de falar. Seu
olhar atravessara as paredes atrás de suas memórias. Estava longe, muito longe.
Ao notarem essa atitude estranha e imprevisível, os jornalistas também se
calaram. Uma cena que poderia ser retratada por um pintor de tão estática. O
silêncio se arrastava e a situação permaneceu assim por não sei quanto tempo
até que os jornalistas incomodados com a falta de informações esboçaram uma
reação no sentido de retomarem a carga de perguntas. Não demorou muito para que
conversas paralelas, sugerindo interrogação e perplexidade, fossem aos poucos
cochichadas no salão. Olhares se encontravam, boquiabertos. Então, um dos
jornalistas passou a falar em voz alta, mostrando-se bastante impaciente e,
irritado com as condições precárias da coletiva de imprensa, passou a se
queixar abertamente dos organizadores. Tal agitação causou certa preocupação
aos agentes secretos. Esses se entreolhavam estrategicamente, fazendo sinais
táticos, uns para os outros, com cotoveladas significativas e pisadas em toques
no pé ou na canela do colega vizinho, indicando, porém, que a situação ainda
estava sob controle. Mas diante do burburinho nervoso que se avolumava, um dos
agentes secretos, muito provavelmente o comandante, tomou a palavra e solicitou
encarecidamente aos repórteres que permanecessem em seus lugares. Em vão.
Alguns jornalistas já circulavam livremente pelo salão falando ao telefone
celular. Nada, porém, tirava o Andarilho das Estrelas de suas meditações. Por
sua vez, os repórteres comentavam ou davam risadas da circunstância um tanto
inédita, enquanto fotógrafos tiravam fotos dos mais diversos ângulos. Já os
agentes secretos, prevendo que seria impossível segurar um tumulto dentro do
salão, passaram a gesticular energicamente os braços, com os quais faziam
movimentos variados, ao mesmo tempo em que levantavam os óculos e piscavam os
olhos num tipo de código Morse, avisando que chegava o momento de bater em
retirada. Tudo indicava problemas à vista. Felizmente, o Andarilho das Estrelas
saiu de sua letargia momentânea, arregalou bem os olhos, que se fixaram nos
jornalistas, e em seguida ensaiou dizer alguma palavra que não saía. Diante
disso, os jornalistas caíram paralisados sobre suas cadeiras como se tivessem
sido atingidos pelo olhar petrificante de um górgona.
O que será que está acontecendo?!
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