A crônica de Milton Dias.
O livro ´Entre a boca da
noite e a madrugada´, de Milton Dias, representa o gênero crônica entre as
obras indicadas para o próximo vestibular da Universidade Federal do Ceará.
Desse modo, seus aspectos estilísticos, temáticos e estéticos, bem como a
evolução da crônica enquanto expressão literária constituem o interesse central
dessa edição.
Milton Dias (* 1919 - Ipu - CE; + 1983 - Fortaleza - CE ), após iniciar os estudos na cidade de sua infância, Massapê, vem para o Colégio Castelo Branco em regime de internato. A experiência da infância em meio à paisagem sertaneja, seus mitos e ritos, lendas e cantorias, foi fundamental para a formação de sua sensibilidade criadora, uma vez que despertaria, no futuro cronista, a inclinação para o lirismo, o poético.
No Colégio Marista Cearense, onde realizou os estudos secundários, descobriu, em definitivo, a vocação da escritura. Sendo fundador dos jornais ´O Ideal´; e ´Alvorada´.
Graduou-se em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia; em Paris, cursou os Estudos Superiores Modernos de Língua Francesa e Literatura Francesa. O Governo francês o condecorou com a Ordem das Palmas Acadêmicas. Foi professor de Língua e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC. Ocupou, na Academia Cearense de Letras, a Cadeira nº 4.
Sua escritura envolve a produção de ensaios, de contos, mas a sua consagração enquanto criador se deu no gênero crônica. Publicou, ao longo de 29 anos de ininterrupta produção em jornal, as seguintes obras: ´Sete Estrelo´ (1960); ´As cunhãs´ (1966); ´A ilha do homem só´ (1966); ´Entre a boca da noite e a madrugada´ (1971); ´Viagem ao arco-íris´ (1974); ´Cartas sem respostas´ (1974); ´Fortaleza e eu´ (1976); ´A capitoa´ (1982) - crônicas; ´As outras cunhãs´ (1976) - (histórias e crônicas´; ´Péguy, poeta da esperança´ (1976); ´Passeio no conto francês´ (1983) - ensaio. A reunião parcial de suas crônicas está no livro ´Relembranças´.
Do gênero crônica
O ensaísta Massaud Moisés, em seu ´Dicionário de termos literários´, (São Paulo: Cultrix, 1974, p. 131-133) exprime, em síntese, as várias acepções do vocábulo ´crônica´ ao longo dos tempos. No início da era cristã, designava uma relação de acontecimentos, cronologicamente ordenados, simplesmente registrados, sem o aprofundamento das causas, tampouco interpretados.
A partir do século XIX, passou a rubricar textos que só longinquamente se vinculavam à forma primitiva de crônica, pois, ostentavam, agora, estrita personalidade literária.
A crônica, em sua feição moderna, via de regra publicada em jornais ou revistas, para, depois, ter uma seleção impressa em livro, concentra-se num acontecimento diário que tenha chamado a atenção do escritor, ( os movimentos da cidade, a paisagem urbana, uma cena lírica, um ser, um objeto, um fenômeno natural etc) em introspecções (o estar-no-mundo, os sentimentos, os sonhos, o país da infância) ou em motivos encomiásticos etc. É, pois, uma expressão literária híbrida: pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista, confissão, diálogo etc, bem como girar em torno de pessoas fictícias ou reais.
Assim, a crônica habita entre a poesia e conto: implicando sempre a visão pessoal, subjetiva, ante um fato qualquer do cotidiano, a crônica estimula a veia poética do prosador; ou dá margem a que este revele seus dotes de contador de histórias. No primeiro caso, pode resultar num autêntico poema em prosa; no segundo, num conto.
A crônica, portanto, nscreve-se na fronteira entre a literatura e o jornalismo, mas supera -quando literária - a efemeridade deste. A ´Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel é o marco inicial da crônica em nossa terra, pois, pela vez primeira, a paisagem brasileira desperta o olhar de um cronista, pois ele recria, com sensibilidade e arte tudo o que deparou no primeiro contato dos portugueses com os nativos, dando relevo até a coisas insignificantes.
Literatura e jornalismo
Escrita, a princípio, para publicação em jornal, a crônica exige, antes de tudo, uma linguagem simples, espontânea, sem malabarismos verbais, tendo em vista a heterogeneidade do público a que visa atingir. No entanto, tal simplicidade não implica desleixo da construção textual, tampouco um desvincular-se dos procedimentos por que se norteia criação artística.
Todo cronista, portanto, tem em mente a efemeridade do meio; nesse sentido, procura vencê-la, tingindo de arte sua escritura, fazendo com que esta, uma vez migrando para um livro, possa, sem prejuízos do belo, percorrer décadas, séculos, sem perder a sua atualidade - residindo esta, principalmente, nos elementos por que se ergue a escritura.
Hoje, em meio aos caos cotidiano, em que os minutos são controlados, (o tempo é comprimido) a crônica já não ocupa grandes espaços em colunas; assim, o cronista atual deve, antes de tudo, guiar-se pelo poder de síntese, a partir de frases incisivas, de economia vocabular, de supressões do supérfluo, mais insinuando, mais sugerindo do que apresentando, propriamente, com observação miúda, o elemento de seu texto.
Cabe ao jornal informar um fato, discuti-lo ou, quando necessário, desvendá-lo aos olhos do leitor. O compromisso do jornalista é com a objetividade no tratamento de seu material informativo; o cronista, por sua vez, pode tratar do mesmo assunto abordado pelo jornal, mas sobre este lançará sua subjetividade, sua leitura pessoal, uma vez que o cotidiano é, quase sempre, filtrado pela emoção, pelos olhos particulares com que captura os objetos do real.
A crônica de Milton Dias
Essencialmente cronista, Milton Dias sabe a importância das coisas miúdas, dos pequenos acontecimentos que também fazem parte da condição humana.
Ao captar instantes, fragmentos de tempo, ele, com o olhar agudo, entende que aí se esconde a complexidade de nossas dores, das nossas alegrias, dos nossos sonhos, das nossas frustrações; percebe, assim, que, por trás do aparentemente banal, do que pode parecer inexpressivo, está algo que nos perturba, que diz de nós, que, afinal, espelha nosso duplo ou fragmentos de nossos valores, crenças e modos de ver o mundo.
A crônica de Milton Dias é, essencialmente, lírica. Sua linguagem flui em ritmo prolongado, muitas vezes em períodos longos, mas em frases curtas, e dessa combinação se evola um quê de música, de melodia que se encontra nas vozes da natureza. O gosto pelos adjetivos faz com que os quadros da realidade por ele captados banhem-se de uma atmosfera pastosa, pois tudo se deixa envolver pela emoção.
É ele, sobretudo, um amante da cidade que o acolheu - esta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Em suas crônicas, enumeram-se os logradouros, os monumentos, os tipos populares, os movimentos da noite, o conto dos galos, o apito dos vigias, os automóveis com os seus faróis queimando a noite escura. Naturalmente, tal configuração já não mais condiz com os dias de hoje; entanto, lê-lo é deparar uma outra Fortaleza, estabelecendo, assim, uma ponte entre o passado e o presente; é, pois, um reencontro com fragmentos de nossa identidade.
Milton Dias (* 1919 - Ipu - CE; + 1983 - Fortaleza - CE ), após iniciar os estudos na cidade de sua infância, Massapê, vem para o Colégio Castelo Branco em regime de internato. A experiência da infância em meio à paisagem sertaneja, seus mitos e ritos, lendas e cantorias, foi fundamental para a formação de sua sensibilidade criadora, uma vez que despertaria, no futuro cronista, a inclinação para o lirismo, o poético.
No Colégio Marista Cearense, onde realizou os estudos secundários, descobriu, em definitivo, a vocação da escritura. Sendo fundador dos jornais ´O Ideal´; e ´Alvorada´.
Graduou-se em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia; em Paris, cursou os Estudos Superiores Modernos de Língua Francesa e Literatura Francesa. O Governo francês o condecorou com a Ordem das Palmas Acadêmicas. Foi professor de Língua e Literatura Francesa no Curso de Letras da UFC. Ocupou, na Academia Cearense de Letras, a Cadeira nº 4.
Sua escritura envolve a produção de ensaios, de contos, mas a sua consagração enquanto criador se deu no gênero crônica. Publicou, ao longo de 29 anos de ininterrupta produção em jornal, as seguintes obras: ´Sete Estrelo´ (1960); ´As cunhãs´ (1966); ´A ilha do homem só´ (1966); ´Entre a boca da noite e a madrugada´ (1971); ´Viagem ao arco-íris´ (1974); ´Cartas sem respostas´ (1974); ´Fortaleza e eu´ (1976); ´A capitoa´ (1982) - crônicas; ´As outras cunhãs´ (1976) - (histórias e crônicas´; ´Péguy, poeta da esperança´ (1976); ´Passeio no conto francês´ (1983) - ensaio. A reunião parcial de suas crônicas está no livro ´Relembranças´.
Do gênero crônica
O ensaísta Massaud Moisés, em seu ´Dicionário de termos literários´, (São Paulo: Cultrix, 1974, p. 131-133) exprime, em síntese, as várias acepções do vocábulo ´crônica´ ao longo dos tempos. No início da era cristã, designava uma relação de acontecimentos, cronologicamente ordenados, simplesmente registrados, sem o aprofundamento das causas, tampouco interpretados.
A partir do século XIX, passou a rubricar textos que só longinquamente se vinculavam à forma primitiva de crônica, pois, ostentavam, agora, estrita personalidade literária.
A crônica, em sua feição moderna, via de regra publicada em jornais ou revistas, para, depois, ter uma seleção impressa em livro, concentra-se num acontecimento diário que tenha chamado a atenção do escritor, ( os movimentos da cidade, a paisagem urbana, uma cena lírica, um ser, um objeto, um fenômeno natural etc) em introspecções (o estar-no-mundo, os sentimentos, os sonhos, o país da infância) ou em motivos encomiásticos etc. É, pois, uma expressão literária híbrida: pode assumir a forma de alegoria, necrológio, entrevista, confissão, diálogo etc, bem como girar em torno de pessoas fictícias ou reais.
Assim, a crônica habita entre a poesia e conto: implicando sempre a visão pessoal, subjetiva, ante um fato qualquer do cotidiano, a crônica estimula a veia poética do prosador; ou dá margem a que este revele seus dotes de contador de histórias. No primeiro caso, pode resultar num autêntico poema em prosa; no segundo, num conto.
A crônica, portanto, nscreve-se na fronteira entre a literatura e o jornalismo, mas supera -quando literária - a efemeridade deste. A ´Carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel é o marco inicial da crônica em nossa terra, pois, pela vez primeira, a paisagem brasileira desperta o olhar de um cronista, pois ele recria, com sensibilidade e arte tudo o que deparou no primeiro contato dos portugueses com os nativos, dando relevo até a coisas insignificantes.
Literatura e jornalismo
Escrita, a princípio, para publicação em jornal, a crônica exige, antes de tudo, uma linguagem simples, espontânea, sem malabarismos verbais, tendo em vista a heterogeneidade do público a que visa atingir. No entanto, tal simplicidade não implica desleixo da construção textual, tampouco um desvincular-se dos procedimentos por que se norteia criação artística.
Todo cronista, portanto, tem em mente a efemeridade do meio; nesse sentido, procura vencê-la, tingindo de arte sua escritura, fazendo com que esta, uma vez migrando para um livro, possa, sem prejuízos do belo, percorrer décadas, séculos, sem perder a sua atualidade - residindo esta, principalmente, nos elementos por que se ergue a escritura.
Hoje, em meio aos caos cotidiano, em que os minutos são controlados, (o tempo é comprimido) a crônica já não ocupa grandes espaços em colunas; assim, o cronista atual deve, antes de tudo, guiar-se pelo poder de síntese, a partir de frases incisivas, de economia vocabular, de supressões do supérfluo, mais insinuando, mais sugerindo do que apresentando, propriamente, com observação miúda, o elemento de seu texto.
Cabe ao jornal informar um fato, discuti-lo ou, quando necessário, desvendá-lo aos olhos do leitor. O compromisso do jornalista é com a objetividade no tratamento de seu material informativo; o cronista, por sua vez, pode tratar do mesmo assunto abordado pelo jornal, mas sobre este lançará sua subjetividade, sua leitura pessoal, uma vez que o cotidiano é, quase sempre, filtrado pela emoção, pelos olhos particulares com que captura os objetos do real.
A crônica de Milton Dias
Essencialmente cronista, Milton Dias sabe a importância das coisas miúdas, dos pequenos acontecimentos que também fazem parte da condição humana.
Ao captar instantes, fragmentos de tempo, ele, com o olhar agudo, entende que aí se esconde a complexidade de nossas dores, das nossas alegrias, dos nossos sonhos, das nossas frustrações; percebe, assim, que, por trás do aparentemente banal, do que pode parecer inexpressivo, está algo que nos perturba, que diz de nós, que, afinal, espelha nosso duplo ou fragmentos de nossos valores, crenças e modos de ver o mundo.
A crônica de Milton Dias é, essencialmente, lírica. Sua linguagem flui em ritmo prolongado, muitas vezes em períodos longos, mas em frases curtas, e dessa combinação se evola um quê de música, de melodia que se encontra nas vozes da natureza. O gosto pelos adjetivos faz com que os quadros da realidade por ele captados banhem-se de uma atmosfera pastosa, pois tudo se deixa envolver pela emoção.
É ele, sobretudo, um amante da cidade que o acolheu - esta Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Em suas crônicas, enumeram-se os logradouros, os monumentos, os tipos populares, os movimentos da noite, o conto dos galos, o apito dos vigias, os automóveis com os seus faróis queimando a noite escura. Naturalmente, tal configuração já não mais condiz com os dias de hoje; entanto, lê-lo é deparar uma outra Fortaleza, estabelecendo, assim, uma ponte entre o passado e o presente; é, pois, um reencontro com fragmentos de nossa identidade.
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