SERENATAS
Nada mais puro, carinhoso, amoroso, fantasioso,
imaginário e sentimental que… as serestas nos Morrinhos.
Os rapazes se organizavam em um grupo e marcavam a
grande noite. Quase sempre aos sábados. Só fugiam a essa rotina se houvesse um
motivo especial! Alguém que fosse
embora do lugar, fato rotineiro. E, como isso acontecia em qualquer dia da
semana, nesse caso, a seresta era programada para a antevéspera da partida.
Eram somente rapazes os componentes, mulheres não
podiam participar. O número de componentes não tinha limite. Porém havia regras
a serem cumpridas. Nenhum dos componentes, sobre qualquer pretexto, podia beber
quaisquer tipos de bebida alcoólica
antes e durante o evento. Isso acontecia somente depois, quando se
confraternizavam.
Eram músicas rudes; um violão, um bandolim, um banjo
e, não raro, apenas um violão. Os rapazes, com raras exceções, todos cantores,
vocalistas e, também não raros, grandes tenores. Às vezes, saiam do tom, suas
cordas vocais não acompanhava o tom escolhido; nada que o plangente violão não
consertasse. Apenas um cantava por vez; quase sempre aquele que tinha como pretensão alguém daquela casa. Não podiam
conversar entre si quando estavam se aproximando da casa alvo. Vinham eles pela
estrada de areias brancas, iluminada pela Lua. Vinham em um silêncio de
mosteiro. Esse silêncio, somente era quebrado pelos acordes do violão, isso já
na soleira da janela da amada.
Cantavam-se uma, duas ou três músicas. Quase sempre
valsas: “Deusa do Maracanã”, “Lágrimas”, “Pequena Cruz de Teu Rosário”, “Rosa”,
“Ave-Maria”, “A Grande Mágoa”, “Deusa do Cassino”, “Deusa da Minha Rua” e tantas outras, o repertório era
infinito. Eram músicas lindas, com certeza chegavam ao mais profundo âmago da
pretendida. Se conseguíamos, não sabíamos, porém a intenção era essa. Depois do
recado dado, saímos com o mesmo silêncio que havíamos chegados.
Alguns pais, entusiasmados abriam suas casas e nos
convidavam entrar, eram servidos café e outras iguarias. Nós não gostávamos
quando isso acontecia. Aquela noite era somente nossa.
No fim da madrugada, tendo cumprido a tarefa
planejada, entrávamos em uma bodega, previamente escolhida e os que bebiam (e
eram poucos) esquentavam a cachola com a marvada. Eu mesmo não bebia nada até
muitos anos no Rio, quando experimentei um copo de cerveja e achei amarga pra
dedéu. Comprávamos lanhos de toucinho salgado ou peixes também salgados – sardinha era mais comum – enchíamos um
velho prato de balança com álcool e púnhamos fogo, assávamos o peixe ou o
toucinho e comíamos com farinha de mandioca.
As serestas que tenho visto aqui no Sudeste, em Paraty e outras cidades da região,
principalmente, em Conservatória, “A cidade das serestas”, são bastante diferentes
dessas que eu estou falando.
Nas serestas do sudeste, a cantoria é coletiva, cantam
todos ao mesmo tempo, há muito barulho e a presença de bebidas alcoólicas é
flagrante. Nas nossas não, cantava apenas um por vez. Também outra coisa, as
serestas daqui têm sentido nostálgico; cantam eles saudades, lembranças de coisas ou tempos passado, lembrando de
algo que viveram. A nossa lá dos Morrinhos não!
A nossa era como um pássaro que chegando à vida adulta
ensaia seus primeiros madrigais e… canta. Canta com a única intenção de dizer à
fêmea que já está pronto (Isso nós fazíamos, porém inconscientemente, mas o
recado estava dado). Falava-se de amor, não de saudades.
Também uma despedida era motivo para uma serenata. E
aí se cantava uma saudade que estava por vir. Vou dar um exemplo. No ano de
1952, o Ceará foi assolado por uma grande seca. As plantações morreram, os rios
secaram. E, como existia um costume secular de nas grandes secas o cearense
migrar para o Maranhão, os Morrinhos não ficou imune naquele flagelo.
Reuniram-se oito ou dez famílias e fretaram um
caminhão para os levarem ao Maranhão. Para vocês terem idéia da pobreza daquela
gente, um só caminhão levou dez famílias com todos seus pertences, um total de
aproximado quarenta pessoas incluindo as crianças. Pessoas essas que, em sua
maioria, nunca mais voltaram, nem mesmo a passeio. Entre esses retirantes iam
quatro mocinhas, que deixavam seus sonhos, seus anseios e suas ilusões. Eram
Francisca das Chagas Damasceno, Brígida Damasceno, Vicensa Mendes Damasceno e
Francisca Leitão Damasceno. As duas últimas eram sobrinhas das primeiras.
A Vicensa era uma adolescente que, se disséssemos que
era bonita, não estávamos sendo justos, ela era linda. A beleza dela não era
apenas física, mas principalmente de alma, era um anjo desabrochando para a
vida.
Era afilhada de minha mãe, que a chamava de
Vicensinha. Vicensa namorava um amigo meu que fez uma seresta na véspera da
triste partida. Essas meninas, além de bonitas, eram de uma meiguice muito
grande, havia candura e muita doçura em suas almas e em tudo que elas falavam.
A pureza dessas meninas era indescritível. Foram, e nunca mais voltaram.
Eu não citei o nome de ninguém dessas quase quarenta
pessoas, embora soubesse o nome de todos, com exceção apenas de algumas crianças.
Apesar de eu ter na época apenas quatorze anos, eram todos meus amigos. Não
quero sofrer novamente.
Porém, citei os nomes dessas meninas, por dois
motivos: primeiro, elas eram tudo que descrevi; segundo, o tema desse texto é
seresta e, como mencionei que uma delas era namorada do meu amigo, fizemos na
véspera da triste partida uma serenata para ela. isso permitiu a ele dar seu
recado, cantando em sua janela, talvez, o último recado de amor entre os dois,
uma vez que em alguns anos ela com a certeza que não mais voltaria ao Ceará, e
também que ele não iria ao Maranhão, casou-se ela com alguém por lá. E ele
tempos depois também se casou e (pasmem!), por ironia do destino, com uma
menina que também fora naquele caminhão ainda criança. Tempos depois seus pais
voltaram ao Ceará, ela já moça e bonita, casou-se com meu amigo.
Entretanto, eu estava falando era da despedida e da
serenata que fizemos na véspera, ele cantou em sua janela naquela noite uma
música que era o grande sucesso no momento da dupla caipira Cascatinha Inhana ,
“Índia”. Aquela música parecia que tinha sido escrita para aquele momento,
então vejamos a letra: “Índia teus
cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar. Teus lábios de rosas para mim sorrindo, e a
doce meiguice deste teu olhar. Índia, da pele morena tua boca pequena eu quero
beijar. Índia, sangue tupi, tens o cheiro da flor, vem que eu quero te dar,
todo meu grande amor. Quando for embora para bem distante, que chegar a hora de
dizer-te adeus, ficas em meus braços só mais um instante, deixas os meus lábios
se unirem aos teus. Índia, levarei saudades da felicidade que você me deu.
Índia a tua imagem, sempre comigo vai, dentro do meu coração, todo teu
Paraguai.
Nossas serenatas, ou serestas, como queiram.
Tinham uma mensagem, tinham um recado.”
Do livro: ‘Histórias nos Morrinhos”
De Amadeu Lucinda.
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