O “entremeio” do boi (Boi de reisado)
Téo Brandão
Como acontece nos boi-bumbá da Amazônia, nos bumba-meu-boi do Maranhão, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Norte de Alagoas, nos Reis de boi do Espírito Santo ou nos bois-de-mamão do Paraná e Santa Catarina, é o boi o principal “entremeio” do reisado que se dança nas zonas centro e sul do Estado de Alagoas, bem como nos folguedos que o semelham ou dele derivam: caboclinhos e guerreiros.
Forma sincrética entre o antigo reisado do bumba-meu-boi e o auto dos congos, constitui-se o reisado nas Alagoas de uma suíte de danças cantadas, entre as quais se intercalam declamações de loas ou “embaixadas” e pequenas representações dramáticas, geralmente muito simples e pobres de enredo –, os “entremeios”. Corruptela, segundo Artur Ramos, de entremez, correspondem tais representações antes ao seu sentido etimológico que ao histórico. Como os intermezzi italianos, seu nome vem antes de tudo do fato de se intercalarem entre danças e embaixadas. Só em alguns casos o significado histórico que depois tomou a palavra entremez – cenas burlescas, jocosas e satíricas – entra em linha de conta.
O seu número é variável, na dependência de fatores diversos. Alguns reisados, porque sua preparação seja dispendiosa, requeira habilidade do fabricante de máscaras e dispositivos mecânicos ou virtuosidade do dançador, apresentam-se com reduzido número de entremeios. Outros, bem que ensaiados com vários “bichos” não chegam a exibi-los todos pelo excessivo número de peças ou “embaixadas” atualmente mais apreciadas pelo público amante de tais folguedos.
Demais, no correr dos anos, tem havido preferência para determinados entremeios. Daí o desaparecimento de antigos, a criação de novos e até mesmo a volta, como novidade, daqueles que só as gerações mais velhas conheceram.
A burrinha ou o cavalo-marinho, o guriabá, o zabelê, o jaraguá, o foiará, a mamãe velha, o Mané pequenino, o corcunda são entremeios dos reisados das primeiras décadas do século, hoje raramente levados à cena, exceto em determinados municípios ou regiões mais tradicionalistas. Já o sapo, o urso, o lobisomem, o papa-figo, o doido, a onça etc. são entremeios modernos, comumente exibidos em reisados e guerreiros.
O boi, entretanto, é uma exceção. Sempre atual, é o único entremeio que não pode deixar de ser levado e de tal importância que em certos casos, como vimos, nomeia todo o folguedo ou reisado. Demais, disso, é o de mais rico conteúdo dramático apresentando-se sob numerosas variantes.
Compõe-se a figura de uma armação de papel, pano e madeira, imitando um boi, geralmente o zebu, com seu característico caroço, hoje tão prezado pelos pecuaristas. Este é o boi “de costela” mais usado em guerreiros. Nos reisados, o boi é geralmente “de panos: cabeça de boi esculpida em madeira ou caveira de boi pintada, montada num pau que o dançador de entremeio segura recurvado, para que um lençol de chita vistosa, de florões, amarrado à cabeça do boi, lhe recubra todo o corpo.
Além do boi, figuram no entremeio: o mestre, o Mateus e o doutor, mascarado que veste velho croisé, de barbas brancas e óculos escuros e sobraça bengala e livro volumoso.
O mestre, que representa o fazendeiro, ao iniciar-se o entremeio, chama um dos mateus (atualmente dois que deixaram de ser nomes próprios para significarem os personagens negros do auto) para ir buscar um boi que, diz ter sabido, possui o negro para vender. Este negaceia e só após promessas e ameaças do mestre resolve trazer o seu boi à cena. Ouve-se fora da sala ou recinto o chocalho do boi, os aboios dos mateus, a grita e correria dos meninos e moleques, que o acompanham entre chifradas do animal e correiadas dos negros até que chegue à porta de entrada da sala. Para aí se desloca, então, todo o reisado, inclusive a orquestra a fim de receber o boi cantando um fragmento da velha e célebre xácara portuguesa da Bela pastora:
Pastorinha mana (bis)
Que fazeis aqui? (bis)
Pastoreando o gado, ô maninha (bis)
Que eu aqui perdi (bis)
Que fazeis aqui? (bis)
Pastoreando o gado, ô maninha (bis)
Que eu aqui perdi (bis)
Pastorinha mana (bis)
Que fazeis lá dentro? (bis)
Pastoreando o gado, ô maninha (bis)
Pra meu casamento (bis)
Que fazeis lá dentro? (bis)
Pastoreando o gado, ô maninha (bis)
Pra meu casamento (bis)
Após esta velha cantiga, segura o mestre o boi pelos chifres e faz-lhe o elogio proferindo algumas décimas:
Este meu boi delicado
Cheio de ouro e perfume
Não há dinheiro que pague
Na ribeira deste mundo
No sul, no norte e sertão
Este boi é valentão
Eu juro por Deus a fé
Homem, menino e muié
Todos me prestem atenção
Cheio de ouro e perfume
Não há dinheiro que pague
Na ribeira deste mundo
No sul, no norte e sertão
Este boi é valentão
Eu juro por Deus a fé
Homem, menino e muié
Todos me prestem atenção
Volta, em seguida, todo o rancho ao salão, passeando o boi pelo círculo dos assistentes, a cantar em coro:
Chegou, chegou (bis)
Lá chegou meu boi agora (bis)
Se quiser que eu dance, eu danço (bis)
Se não quiser vou me embora (bis)
Lá chegou meu boi agora (bis)
Se quiser que eu dance, eu danço (bis)
Se não quiser vou me embora (bis)
O mestre:Entra, entra, ramalhete
Para dentro do salão (bis)
Faz o serviço bem feito
Pra todos prestá ‘tenção (bis)
Para dentro do salão (bis)
Faz o serviço bem feito
Pra todos prestá ‘tenção (bis)
Finda esta cantiga, entoa-se o ê bumba (onomatopeia que batizou o entremeio e por extensão todo o reisado em algumas regiões – bumba-meu-boi e boi-bumbá) ou xa xô, canto que se desenvolve durante quase toda a representação e pelo qual se vão descrevendo ou ordenando todas as atividades do boi pelo salão; as cortesias e salamaleques para a “nobre gente”; as investidas contra meninos, moleques e mateus; as danças e piruetas “mode o povo apreciá”. Ao mesmo passo, o boi deita as costumeiras “sortes” atirando o dançador lenços ao colo dos espectadores da função:
Ora entra janeiro. Ê bumba (ou xa xô)
Faz a cortesia. Ê bumba (ou xa xô)
Ao dono da casa. Ê bumba (ou xa xô)
Com toda famia. Ê bumba (ou xa xô)
Faz a cortesia. Ê bumba (ou xa xô)
Ao dono da casa. Ê bumba (ou xa xô)
Com toda famia. Ê bumba (ou xa xô)
Meu boi é bonito. Ê bumba (ou xa xô)
Que vem do sertão. Ê bumba (ou xa xô)
Meu boi é bonito. Ê bumba (ou xa xô)
Deitou-se no chão. Ê bumba (ou xa xô)
Que vem do sertão. Ê bumba (ou xa xô)
Meu boi é bonito. Ê bumba (ou xa xô)
Deitou-se no chão. Ê bumba (ou xa xô)
Meu boi é bonito. Ê bumba (ou xa xô)
Veio do estrangeiro. Ê bumba (ou xa xô)
Faz a continência. Ê bumba (ou xa xô)
Ao rei da cadeira. Ê bumba (ou xa xô)
Veio do estrangeiro. Ê bumba (ou xa xô)
Faz a continência. Ê bumba (ou xa xô)
Ao rei da cadeira. Ê bumba (ou xa xô)
No meio do alarido e da verdadeira desordem em que se encontra a sala com as correrias do boi, as “figuras” (dançarinos-cantores) se reúnem em seu derredor e o mestre propõe ao mateu:
– Ô meu negro, vamos matar este boi que hoje é véspera de Natal?
E mesmo sem o consentimento do presumido dono, mestre e coro cantam:
Chegue, minha gente, xa, xô
Da saia de bico, xa, xô
Mode assistir à morte, xa, xô
Deste meu boi bonito, xa, xô
Da saia de bico, xa, xô
Mode assistir à morte, xa, xô
Deste meu boi bonito, xa, xô
Então, rei ou mateu enfia ou bate com a espada na cabeça do boi. Imediatamente cai este ao solo, enquanto o dançador do entremeio escapole debaixo do lençol ou armação.
Na música do ê bumba ou xa xô, canta-se o conhecido:
O meu boi morreu
O que será de mim?
Vou mandar buscar outro, ê maninha
Lá no Piauí
O que será de mim?
Vou mandar buscar outro, ê maninha
Lá no Piauí
É a vez da “repartição” ou “testamento” do boi, hoje em vias de desaparecimento. Canta-se, com outra música, o estribilho:
Oi, iaiá, oi, iaiá
Olhe o boi que te dá?
Aguenta, janeiro
Meu boi marruá (ou maiabá)
Olhe o boi que te dá?
Aguenta, janeiro
Meu boi marruá (ou maiabá)
Enquanto o mestre faz a repartição, distribuindo os “pesos” entre as pessoas presentes, ausentes e hipotéticas:
A tripa grossa
É de sinhá Eudócia
É de sinhá Eudócia
A tripa gaiteira
É das moças solteiras
É das moças solteiras
O figo
Esse vai comigo
Esse vai comigo
O pá do focinho
É de seu Pedrinho
É de seu Pedrinho
A chã de dentro
É de seu Antônio Bento
É de seu Antônio Bento
Mas eis senão quando o boi, de morto e em vias de esquartejamento, transforma-se por passe de mágica apenas em doente. E então, urge a presença de um doutor que o mateu, encarregado pelo mestre, vai chamar. Ao grotesco facultativo da comédia, o negro esperto e malicioso convida para receitar uma donzela, que “se encontra muito mal”, prometendo ao velho que se casaria com ela, desde que o curasse.
À falta de outra montaria, escancha-se o doutor às costas do mateu e chega à presença do mestre. Mas, ao saber que veio para curar um boi, protesta dizendo ser doutor de curar gente etc. Mas afinal, premido pelos chicotes dos mateus e pela ponta da espada do mestre, aceita fazer a cura e acerta o preço do trabalho.
Personagem ridícula, os mateus fazem-lhe troça, puxam-lhe a barba, mandam-no sentam sobre um dos chifres do boi (pois o doutor é míope), dão-lhe beliscões etc.
Apesar de tudo, o doutor começa seu trabalho, abrindo o seu livro, no qual lê seus valiosos títulos:
Eu sou um doutor formado
Que aprendeu lá no Corrente
Aquele que eu passar a mão
Fica ainda mais doente
Que aprendeu lá no Corrente
Aquele que eu passar a mão
Fica ainda mais doente
Eu sou um doutor formado
Que aprendi em Vila Nova
O doente que eu passar a mão
Vá logo preparando a cova
Que aprendi em Vila Nova
O doente que eu passar a mão
Vá logo preparando a cova
Em seguida, ordena a receita ao negro: uma “ajuda” (clister) de raiz de lajeiro, do lado que nasce o sol.
É a hora amarga para moleques e meninos, pois um deles terá que ser metido sob o lençol ou armação fazendo às vezes de bexiga ou seringa.
E aí embaixo, onde a estas alturas já terá voltado o dançador, levará cascudos e servirá de mofa à toda assistência.
Finda a bexigada, sara o boi que se levanta. Canta-se sua despedida:
Vai-te embora, janeiro, xa, xô
Tua hora é fatá, xa, xô
Já chegou a hora, xa, xô
De se arretirá, xa, xô
Tua hora é fatá, xa, xô
Já chegou a hora, xa, xô
De se arretirá, xa, xô
Vai-te embora, janeiro, xa, xô
Que passou da hora, xa, xô
Meu boi é bonito, xa, xô
Que já foi-se embora, xa, xô
Que passou da hora, xa, xô
Meu boi é bonito, xa, xô
Que já foi-se embora, xa, xô
Retirado o boi do salão, volta o doutor ao mestre para receber a conta médica. Diz-lhe este haver enviado o dinheiro pelos negros que são interpelados agressivamente pelo doutor:
– Cadê meu dinheiro, negros ladrões:
– Ladrões, não, seu doutor! Trate sério se quiser ser respeitado. Seu dinheiro está aqui no bolso. Diga de que forma quer levar: de parcela ou de pancada?
– Já que estou no meio de ladrões, – responde o doutor, – de qualquer forma eu recebo.
– Pois então, lá vai de pancada, seu doutor.
E como nas comédias circenses, enxotam os mateus o pobre do doutor de boi à custa de pancada de “macaco” (réstia de cebola), entre os risos, assovios, vaias e gritaria da assistência deliciada com o velho mas sempre querido entremez do bumba-meu-boi, todos os natais representado nas festas das cidades, nos povoados, nos engenhos, pelos rústicos, admiráveis e teimosos artistas, que são os dançadores de reisados e guerreiros das Alagoas.
Brandão, Téo. “O ‘entremeio’ do boi (Boi de reisado)”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1954
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