quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Aos Imortais
Sempre gostei de ler. Placa, bula de remédio, carta para as amigas, classificados do jornal, livrões, livros e livrinhos. Até hoje, na era dos e-books, o cheiro de livro novo é um dos meus preferidos.
Durante a Ensino Médio veio a disciplina de Literatura e pude conhecer um pouco mais sobre as letras: os conceitos, as formas, os gêneros. E não se engane: a beleza dessa afinidade em momento algum foi sinônimo de um “mar de rosas”.
Nada melhor que sentir a utilidade das coisas e o vínculo com as palavras ficou mais forte a partir da dinâmica dos trabalhos escolares que aliavam pratica e teoria. Uma das atividades que mais recordo foi uma visita à Academia Cearense de Letras (ACL). Foi muito animado andar pelo centro da cidade com aquela turma de colegas do Colégio Militar do Corpo de Bombeiros (CMCB). Um percurso curto, mas não deixava de ter uma pitada de independência ir da Praça da Estação até a Praça dos Leões. Eu adorava a minha farda, mas estar à paisana era sempre novidade e lembro bem que naquele dia eu estava usando uma calça jeans e blusa branca.
Já tinha ouvido falar da Academia Brasileira de Letras e sempre achei algo muito chique e quase inatingível. Não conhecia os critérios para ser um Imortal, mas, com certeza, o agraciado deveria escrever muitos livros. Escrever é sempre penoso, então, só poderia ser lugar de pessoas muito inteligentes e distantes dos “pobres mortais”.
Fomos recebidos por um senhor muito simpático chamado Costa Matos logo na entrada da ACL. Ele apresentou-se com muita alegria e humildade como membro da Academia Cearense de Letras. Era um acadêmico do Ceará bem ali sob nossas vistas. O que um A-C-A-D-E-M-I-C-O estaria fazendo ali com um grupo de alunos loucos para ganhar uns pontinhos na nota bimestral?
Logo ele começou a apresentar o prédio, os móveis, as pessoas dos quadros... Contava histórias, falava de poesias e seus olhos brilhavam. Logo percebi que para ser um Imortal não era preciso apenas escrever, mas ter amor pelas palavras. Vi amor nos olhos daquele homem.
Lá pelas tantas, Costa Matos perguntou se alguém conhecia Ipueiras e identificou-se como filho da terra. Logo respondi que não conhecia a cidade, mas minha família era toda de Ipu. Trocamos sorrisos e logo estávamos falando também sobre Bica e a índia Iracema.
As horas passaram e findou-se a visita. Peguei o endereço da Academia com o simpático senhor Imortal pois ele, de pronto, prometeu mandar alguns de seus textos e eu não poderia perder a oportunidade de agradecer o acolhimento e, claro, receber textos de um Imortal.
O trabalho foi apresentado e, como não poderia ser diferente, ganhamos os sonhados pontos. Costa Matos tinha sido surpreendentemente gentil, prestativo, educado, mas mandei a carta sem muita esperança de resposta. Quem era eu pra receber uma carta de um membro da Academia Cearense de Letras?
Eu era uma estudante adolescente que aprendeu que soberba não é inerente aos verdadeiramente grandes.
Na carta eu me apresentei quase que pedindo milhões de desculpas por tomar minutos de seu tempo, contei brevemente sobre minha vida e angústias da vida. Ele respondeu com palavras que nunca esquecerei:
“Fico muito preocupado com você. O mundo precisa da sua presença nessa civilização do estresse. Salve-se, Livinha. Na plenitude do termo, viver é uma sequencia de atos de coragem. Lá atrás, falei na “sua faixa etária”. Bobagem. Isto não existe. Pela sua percepção da vida, você deve ter alguns séculos de idade.”
Muitos lugares, muitas pessoas, muitas lições e ate hoje recorro a essas palavras nos momentos de aflição. Guardo aquela doce lembrança com afeto.
Os tempos levaram o homem Costa Matos, mas quando lembro daquele brilho nos olhos, com certeza, entendo que a palavra “Imortal” não diz respeito apenas às obras, mas às sensações e aos sentimentos que foram deixados em nossos corações.
Apesar do advento da internet e dos computadores em casa, tomei conhecimento da passagem do Acadêmico por meio de conversa-vai-conversa-vem com outro Imortal. E, se me permite a licença poética, a dor doeu bastante.
A dor doeu, mas foi resignificada. “Viver é uma sequencia de atos de coragem” e, com supedâneo na “Deuscidência”, posso dizer que ganhei um outro Imortal.
Conheci Francisco Melo pelas redes sociais. Sim, o mundo virtual pode ser muito generoso para encurtar distâncias desta “civilização do estresse”. Foi professor dos meus pais e de parte dos meus tios, mas não fomos diretamente apresentados. Até acho que seria um memorável encontro de gerações, mas foram as curtidas, compartilhamentos e leituras que fizeram sua obra chegar até mim. Ou será que eu cheguei até ela?
Seu amor pelo Ipu é singular, mas nem de longe é um sentimento possessivo. De fato, é um mestre, mas não é um intelectual egoísta e faz questão que compartilhar seus acervos de imagens, casos e causos do município. A verdade é que Chico Melo é um ícone da educação de Ipu que se reinventou para fomentar a memória da terra e propagar a beleza das letras. Do giz às redes sociais. Das serenatas aos prêmios literários. Do verso à prosa.
Sou uma andante e curiosa sem limites quando ando pelas ruas de Ipu. Certa vez, encontrei o professor Melo aos pés da Igrejinha e foi aquela festa. Caminhamos até a Academia Ipuense de Ciências, Letras e Artes (AILCA) e tive a honra de ouvir um pouco sobre a essência daquele lugar. Uma verdadeira viagem no tempo cheia de detalhes, entusiasmo e emoção. Eu nunca disse a ninguém, mas, naquele dia, vi o mesmo brilho nos olhos que tinha tocado meu coração há alguns anos.
E é sem medo de errar que digo: a presidência da nossa Academia Ipuense de Letras, Ciências e Artes merece brilhar com aquela luz.
Com verdade, carinho e admiração
Lívia Xerez
PS: Pela “Deuscidência” e somente por ela: Francisco Melo hoje ocupa a Cadeira 32 da Academia Cearense de Letras.
A cadeira que foi ocupada por Costa Matos

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