sábado, 12 de setembro de 2015


A Mãe de Iracema

Em nenhum momento no romance temos notícia de quem seja a mãe da heroína dos lábios de mel. Nota-se, já na dedicatória, que a “mãe” de Iracema é a própria terra cearense a quem o livro é endereçado.
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens são conhecidos pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios” [...] (ELIADE: 1972, p. 11)

Iracema é a guardiã do “Segredo da jurema”, e por esse motivo não poderia se entregar ao amor que sentia por Martim, deveria manter-se pura para fabricar para o Pajé a bebida de Tupã, pois nela estava o segredo do sonho . 
“- Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã.” (ALENCAR: 1994, p. 14)

“Jurema é uma árvore, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo, de cheiro ocre, do qual, juntamente com as folhas e outros ingredientes, preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito do haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa sentia com delícias e como se fossem realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico. A fabricação desse licor era uma segredo, explorado pelos Pajés, em proveito de sua influência. Jurema é composto de ju – espinho, e rema – cheiro desagradável.” (SEABRA, apud ALENCAR: 1994, p. 14)


Os rituais eram uma constante entre os indígenas, e essa religiosidade é bem marcada em Iracema. “[...] Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a dança em torno a rude cadência. O Pajé inspirados conduzia o sagrado tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.” (ALENCAR: 1994, p.14). 
“Vemos, pois que a ‘história’ narrada pelo mito constitui um ‘conhecimento’ de ordem esotérica, não só por ser secreto e transmitido durante uma iniciação, mas também porque esse ‘conhecimento’ é acompanhado de um poder mágico-religioso. Com efeito, conhecer a origem de um objeto, de um animal, de uma planta, etc., equivale a adquirir sobre eles um poder mágico, graças ao qual se consegue dominá-los, multiplicá-los ou reproduzi-los sempre que se quer.” (ELIADE: 1963, p. 20)


O noivo de Iracema 

Martim Soares Moreno é um personagem histórico. Cabo português (embora nascido no Rio Grande do Norte), lutou contra holandeses e é considerado o “ fundador” do Ceará. Lutou ao lado de Felipe Camarão, nome cristão do índio Poti, da tribo dos Pitiguaras, amigos dos portugueses – enquanto os Tabajaras, tribo de Iracema, eram amigos dos franceses.
Martim, cujo nome significa “marte, deus da guerra”, aparece como portador das virtudes cavalheirescas, embora, desde o início, apresente-se a Iracema como inimigo: “sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os Pitiguaras, inimigos de sua nação.” ( ALENCAR: 1994, p. 13) 
Martim e Iracema vivem uma história de amor, como é típico dos romances românticos. Uma relação marcada pelo desnivelamento, ocorrendo transgressões – Iracema quebra o juramento e perde a virgindade, e Martim rompe com código de honra da hospitalidade; entretanto o amor é somente uma máscara para ocultar a integração entre raças diferentes. O indianismo de Alencar, em consonância com o indianismo romântico, na busca da valorização do selvagem, em verdade, quer valorizar o ponto de vista do branco, prevalecendo a ótica do colonizador. “O estrangeiro é o senhor da cabana de Araquém” (ALENCAR: 1994, p.12). Martim não se deixa envolver totalmente pela índia; Iracema é sedutora, mas acaba sendo a grande seduzida, deixando-se “morrer de amor” por seu esposo, que andava alheio, sempre olhando para o mar, pensando na terra natal e na virgem loura. O que nos remete a Mircea Eliade:
Tudo indica que fenômenos desse gênero tendem a tornar-se cada vez mais raros. Supõe-se que o “comportamento mítico” das antigas colônias desaparecerá depois que adquirirem sua independência política. Mas, o que irá suceder num futuro mais ou menos distante não nos ajudará a compreender o que passou. O que antes de tudo nos interessa é captar o sentido dessas estranhas formas de conduta, compreender a causa e a justificação desses excessos. Compreendê-las equivale a reconhecê-las como fenômenos humanos, fenômenos de cultura, criação do espírito – e não como irrupção patológica de instintos, bestialidade ou infantilidade. Os próprios excessos orgiásticos tinham um significado, pois, segundo o mito, ao despontar da Nova Era, todas as mulheres pertencerão a todos os homens [...] (ELIADE: 1972, p. 9)

José de Alencar, no posfácio, explica as pesquisas que andou fazendo para que a linguagem de Iracema procurasse, com simplicidade e lirismo, estar adequada ao assunto. Os símiles indicam o temperamento poético, emotivo, e o aproveitamento das imagens americanas configuram a cor local dos românticos. A busca dos mitos e elementos nacionais era uma forma de os românticos reforçarem a idéia de independência cultural do país. 
O autor é um excelente escritor; sua capacidade descritiva ao montar os cenários provoca leitura sensorial, conseguindo, manter o leitor preso ao texto: isso acontece porque ele utiliza a metáfora com muita perfeição. Mas Alencar é machista, conservador, latifundiário, senhoril e dominador escravocrata convicto. Por sua ascendência portuguesa, considera os lusitanos como os grandes responsáveis pela formação de nossa raça. 
Assim, Iracema, numa leitura mais crítica, apresenta duas imagens distintas: como donzela romântica, é virgem, pudica, objeto de desejo masculino e deve ser preservada como tal; mas ao mesmo tempo, Alencar é machista e cria a imagem de uma mulher indutora do pecado. Numa metáfora bíblica e numa visão machista, ela é Eva. O licor da Jurema é a metáfora da maçã. Araquém é a metáfora de Deus. As terras do Ceará representam o Éden.
Ao mesmo tempo Iracema é o retrato fiel da mulher romântica: escrava, obediente, subserviente, dominada, nascida para sofrer2. Iracema é o anagrama da palavra América: jovem, linda e desejada pelo povo europeu; Martim é metáfora da Europa: dominador, branco que chega e impõe sua cultura. 
Nessa relação histórica entre dominador e dominado, a figura destoante é o cacique Irapuã, o portador de sentimento nacionalista verdadeiro, chamado lusofobia. Embora antipático, ele simboliza o nativo digno, que optou pela morte, mas não se entregou ao civilizado. É certo que estava movido pelo ciúme, mas é claramente justificável: Iracema traiu a tribo, traiu a raça, traiu o que havia de mais sagrado e permitiu aos Pitiguaras arrasar os Tabajaras, seus irmãos. Sob a ótica romântica, ela o fez por amor, o amor deve ser colocado acima do bem e do mal. Já Caubi, irmão de Iracema, é um crápula porque permitiu e protegeu um invasor dentro de sua tribo. Poti, amigo de Martim, sujeita-se a correr riscos pela amizade e, quando fogem os três, quer que Martim, que nunca respondeu a Iracema quem era a virgem loura portuguesa de castos afetos, abandone Iracema; aliás, ele mesmo é monossilábico com Iracema., mas jamais deixou Poti sem resposta. Assim, a destruição dos Tabajaras é necessária para facilitar a colonização portuguesa.
Alencar foi extremamente feliz com sua lenda, um canto de amor ao Ceará. Mas aos olhos da história política brasileira, numa análise mais profunda, cometeu uma grande injustiça com a raça indígena, ao valorizar excessivamente o português. Mas, como o livro é romântico, prevalece a proposta romântica, e Iracema não é apenas uma índia: é modelo cultural da mulher brasileira que freqüenta o nosso imaginário. É símbolo mítico de brasilidade, símbolo de tropicalidade e de sensualidade.
Em outras palavras: Iracema retrata a época da colonização brasileira, retomando os mitos característicos da literatura informativa.
Assim, o texto de José de Alencar é composto de inúmeros aspectos míticos - o mito de origem, conforme Eliade (1972, p. 26), “conta e justifica uma ‘situação nova’ – nova no sentido de que não existia desde o início do Mundo. Os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido”; o mito do herói que, segundo Eliade (1963, p. 155) “satisfaz as nostalgias secretas do homem moderno que, sabendo-se condenado e limitado, sonha um dia revelar-se como uma ‘personagem excepcional’, um ‘herói”; os mitos indígenas passando por nosso folclore, como é o caso do Curupira (espírito das trevas: meninos maus); os rituais sagrados. 
Para Moisés (19-, p. 342) “do ponto de vista antropológico e filosófico, o mito é encarado como a palavra que designa um estágio do desenvolvimento humano anterior à história, à lógica, à arte.” A mitologia volta-se para as questões eternas da humanidade ajudando o indivíduo e a sociedade a harmonizar-se às circunstâncias da vida.
Iracema é, assim, uma história que retrata a origem mítica do povo brasileiro.



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