quarta-feira, 26 de março de 2014




Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. 
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que 
seu talhe de palmeira. 
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. 
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua 
guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a 
terra com as primeiras águas. 
Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais 
fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos 
na folhagem os pássaros ameigavam o canto. 
Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. 
Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no 
galho próximo, o canto agreste. 
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a 
virgem pelo nome; outras remexem o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do 
crauá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão. 
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Erguem a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista 
perturba-se. 
Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da 
floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas 
armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. 
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na 
face do desconhecido. 
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na 
religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida. 
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e 
correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara. 
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a 
flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. 
O guerreiro falou: 
— Quebras comigo a flecha da paz? 
— Quem te ensinou guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca 
viram outro guerreiro como tu?
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram,

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