sexta-feira, 9 de outubro de 2015

De um Alguém para Outro Alguém - Descartes Gadelha 
26 de fevereiro de 1991
(TRANSCRITO DO CONVITE)
" De um alguém para outro alguém"
Memórias que são imaginação e devaneios que são inspiração fazem a surpresa na pintura de Descartes Gadelha, e essa surpresa impõe às telas parte de sua força. Assim, o uso da surpresa como poder e como recurso do pensamento, cristalizado em pinceladas, é a estratégia utilizada pelo artista para construir o inesperado.
A obra de Descartes é tão humana que deixa o observador inquieto, pensativo e alarmado. E isso é bom. Sacode o mundo de hoje das pragas tecnicistas, das pinturas, computadorizadas e das inteligências artificializadas. E assim o profissional Descartes Gadelha se inscreve no social e no científico ao representar a história e a estória da prostituição de Fortaleza- que é a do Brasil na mesma dimensão cultural proibida, marginalizada. Note-se que "a hipocrisia da sociedade cristã-ocidental tenta minar a condição de cidadã que toda prostituta deve possuir" (Rudnicki, D., 1990:21).
Sem esgotar psicologicamente o tema, o artista num laborioso percurso, misto de reminiscências de infância, de curiosidades juvenís e de interpretações de adulto, desfila e desafia a "urbis". Imprime, portanto, um embasamento sócio-antropológico ao seu trabalho.
Com isso Fortaleza, a cidade, acaba de contrair uma dívida com Descartes porque ele traz a tona e revive o mundo oculto do "Curral" (o "Curral das Éguas") dos Anos 30; do Arraial Moura Brasil dos Anos 40; do " Cinzas" dos Anos 50; do "Pirambú" dos Anos 60; do "Farol" dos Anos 60 e 70; do "Centro" de todas as décadas das do 1900's. Descartes consegue captar, com coerência e representatividade, a mudança social de cenário do tráfego metropolitano dos anos 70, condensar os efeitos da "mídia" doso anos 80 e, assim, absolver as inovações do jogo de sexo na Fortaleza atual.
O portentoso resultado dessa experiência etnográfica de campo, completada com a do estúdio, é a exposição bem abrangente do núcleo temático descartiano, " De um Alguém para outro Alguém".
No seu conjunto, a exposição é forte nos amarelos fauvistas e vermelhos flamejantes, e apresenta, em crua nudez, uma visão quase fantasmagórica na imagem de mulheres exalando e expulsando libido da maneira a mais orgíaca. Será possível retratar e decompôr o libido sem ser um Freud?
Na mulher decodificada por Descartes Gadelha, e de contornos expressionistas; ou de cócoras, a velha ou a moça, é sentido de alerta e expressão de força e altivez. E se mulher, "da vida" ou "do lar", está em pé e traz o braço acotovelado para uma mão na cintura ou no quadril, então esta mulher é forjada pelo aço da vida dura, amarga, mas aí está a desfiar o mundo.
Descartes se inspira na natureza, sim; natureza aberta e em contínua gestação. Mas ele também assola, invade essa natureza (esse mar, esse céu, essa parede, esse tapume, esse corredor-tabique, esse pardieiro) com o indivíduo, o pária, o homem marcado, a trama e o trauma sociais, os conflitos; as descontinuidades e marginalidades no social.. Se gritantes ou sutis, depende do seu humor, da sua "verve" momentânea, ou da inspiração que decidiu captar na sua "construção da realidade" (Berger, P. e Luckmann, T. 1983).
Nesse esforço de delimitação temática "De Alguém para outro Alguém", Descartes Gadelha descortina o mundo inteiro do mistério, da dor, da paixão, da decadência, do amor. Na modéstia-brejeirice do tema proposto, investigado e dissecado, Descartes teoriza, na tela, a Arte, o Discurso, e o Dilema da sexualidade humana. Ou, noutras palavras, as artes da feminilidade, os discursos da libido, os dilemas da identidade social.
Trecho do artigo: Descartes, " De um alguém para outro alguém"
Zélia Sá V. Camurça
Segundo Descartes: O termo "DE UM ALGUÉM PARA OUTRO ALGUÉM", foi colhido na década de 60 na Amplificadora Brasil, popularmente chamada de irradiadora, localizada no Arraial Moura Brasil e que prestava importante serviço de comunicação à comunidade.
Era comum ouvir-se mensagens sonoras como estas:
"ESTA LINDA PÁGINA MUSICAL VAI DE UM ALGUÉM PARA OUTRO ALGUÉM QUE ESTÁ MUITO ARREPENDIDO" ou "ESTA MIMOSA JÓIA MUSICAL É UMA SOLICITAÇÃO DE UM ALGUÉM PARA OUTRO ALGUÉM QUE OFERECE AO SEU PRÓPRIO CORAÇÃO FERIDO E QUE OUTRO ALGUÉM SABE QUEM É".


(RECORTES DE JORNAIS DA ÉPOCA)
Jornal Diário do Nordeste - 26 de fevereiro de 1991
De um alguém para outro alguém
Cenas da prostituição em Fortaleza em 80 quadros de Descartes Gadelha
'Esta linda página musical vai de um alguém para outro alguém'. A frase ouvida há 30 anos pelo artista plástico Descartes Gadelha, 47 anos, na amplificadora Brasil, instalada na região do baixo meretrício chamada "Curral das Éguas", no bairro do Arraial Moura Brasil, inspirou a exposição intitulada "De Um Alguém Para Outro Alguém" que estará em mostra simultânea, a partir de hoje, na Galeria Domini e no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, sendo que o vernissage do MAUC só acontece dia 27.
"De Um Alguém Para Outro Alguém" são as impressões de Gadelha sobre o meio ambiente de prostituição do qual tem referência desde pequeno, quando morava na Castro e Silva, rua circundante da zona considerada promíscua. A visão de Descartes, que salta aos olhos dos espectadores em 80 telas, em óleo sobre tela, em diversos tamanhos, entretanto é contrária à sociedade da época.
Distoando da opinião geral, Gadelha sempre observou os habitantes do curral pelo lado filosófico - como ensina seu pai - um místico que via naquele lugar um estágio da condição humana ou da evolução de algumas pessoas. Ultrapassada a barreira do preconceito foi mais fácil conviver sem remorsos ou cobranças com as mulheres que sobreviviam das casas de recursos e com a nostalgia de ruas, vielas e casas bem pintadas rodeadas pelo mar, luar, a estação de trem, a Santa Casa de Misericórdia, o Passeio Público e a antiga cadeia pública.
Do "Curral das Éguas", Descartes captou a alma das prostitutas, dos bêbados, dos gigolôs e dos agenciadores de garotas que formavam uma grande família uma espécie de tribo urbana a abrigar as mulheres imprestáveis às grandes pensões. Descartes relembra a trajetória percorrida pelas meretrizes nos lupanares. "As prostitutas de antigamente, ao contrário de hoje, praticamente não tinham escolha. Depois do defloramento não seguido do casamento as mulheres eram obrigadas a sustentarem-se e a única opção eram as pensões ou casa de recursos".
A via-crucis seguida pelas "meninas" era guiada, inexoravelmente, pela decadência. "Elas começaram nas grandes pensões como a Fascinação, na esquina da Senador Alencar com Castro e Silva que tinha como marca registrada a música Fascinação na voz de Carlos Galhardo. Outra casa considerada "classe A" era a Hollywood, onde se encontrava as novidades que apareciam na praça. Garotas com 18 anos, recém-acolhidas pela dona da pensão. Da Fascinação e Hollywood as mulheres desciam para a América, Los Angeles ou Califórnia. De lá para o Zé Tatá ou o Oitão Preto, quando as mulheres atingiam 25 anos, já estavam no Curral.
"Esse movimento de decadência e de descida era natural e encarado como inevitável", afirma Gadelha. No Curral, elas arranjavam velhos para sustentá-las até mais ou menos uns 35 anos e, depois disso, tornavam-se cafezeiras, boleiras e executavam pequenos serviços. As prostitutas, segundo a pesquisa empírica, com base na vivência de Gadelha, nunca morriam velhas. "Elas não passavam dos 50 anos, talvez pelas condições de vida, alimentação e, principalmente, pela grande quantidade de bebida que consumiam".
Na hora da morte, conta Gadelha, revelava-se o momento mais fraterno e religioso da comunidade. Quando a companheira não tinha dinheiro para ser enterrada, as prostitutas se cootizavam e iam deixar o dinheiro na seda da amplificadora Brasil que passava todo o dia tocando a Ave-Maria, de Shunbert, na voz de Vicente Celestino. O código era tão perfeito que ao se ouvir a música, todos no arraial sabiam da morte da prostituta, a ser velada na capela de Santa Terezinha, construída pelas mulheres-damas, hoje o único marco referencial da extinta comunidade.
A extinção do "Curral das Éguas" e a dispersão de seus moradores foi causada pela expansão da cidade e a construção, na década de 70, da Av. Castelo Branco, a conhecida Leste-Oeste. Segundo Gadelha, não havia necessidade da destruição do Curral. O "Curral era uma tradição da cidade, o lado romântico e ingênuo da prostituição, muito diferente das casas de hoje".
O fim das vilas e das casas de madeira, papelão ou sacos plásticos, que delineavam o quadro surrealista, digno de Hieronymus Bosch e Peter Bruegel, deslocou seus habitantes para outras regiões da cidade também conhecidas zonas de prostituição como o "Farol do Mucuripe", a Barra do Ceará e algumas ruas do centro. Com o deslocamento, frisou o pintor, foi desmantelada toda a organização social da cidade e houve um estágio de decadência generalizada das prostitutas.
A exposição de Gadelha retrata, com predominância em tons artificiais da noite, toda essa trajetória - desde os anos 60, a dispersão e a retomada dos pontos de pregação que estão ressurgindo, na conclusão de Gadelha, com maior perversão e brutalidade. Vários fatores contribuem para a violência: a consciência da desgraça que leva ao desespero e desengano, a Aids a deixar os habitantes da noite apavorados, o comércio sexual e o uso demasiado das drogas. "Há trinta anos não se ouvia falar em cocaína. Usava-se pouca maconha e muito álcool.
Os 80 trabalhos mostram basicamente figuras humanas, algumas documentadas nos anos 60 e outras pintadas nos novos pontos. Além do estudo descompromissado com o rigor científico - este só ganha ares de pesquisa antropológica quando a professora Zélia Sá Camurça cristaliza com palavras as cores expressas nas tintas - há um lado mais irônico e caricato. "É o conteúdo brega muito ligado com as pessoas retratadas", destaca.
Neste lado brega cabem louvores a canções como "A Carta", de Waldick Soriano; "O Teu retrato", de Vicente Celestino; o Delírio de Xuxas e Paquitas, Bichas fazendo Pegação ou uma "Paquera Romântica" e o "Assalto" da prostituta "Durante o Êxtase". "A Exposição, define Gadelha, é uma prestação de contas, um balanço das impressões emocionais e visuais percebidas e sentidas no meio onde vive: Retrata a geléia em que se tornou a condição humana. É uma síntese da vida", só concretizada na volta às origens, ao berço, depois muitas andanças em terras e sentimentos dos outros.

Jornal O Povo - 05 de março de 1991
Coluna de Ítalo Gurgel
Zona de turbulência
Prostituição: não há meias cores, nem meias palavras, para descrevê-la. Ela está nas ruas e expõe-se nas esquinas, embora a sociedade insista em confiná-la às "zonas" mais sombrias da cidade.
Descartes Gadelha penetrou nessa zona de turbulência e retratou as prostitutas, o seu mundo, suas caras e bocas, seios e nádegas, seus homens, suas (des)ilusões, sua cadência e sua decadência. Usou todas as cores que lhe permitiu o arco-íris da miséria-humana e agora expõe esse conjunto de telas no Museu de Arte da UFC e na Galeria Domini, com a sem-cerimônia de quem levanta a cortina para revelar uma face oculta da metrópole, que muitos desconjuram e preferiam exorcizar da paisagem urbana.
Descartes percorre a noite e flagra seus personagens tal como eles são: patéticos, trágicos, mórbidos.... Felizes, jamais.. Não faz julgamento de valores. Apenas fotografia, com sensibilidade e paixão. Permite-se, aqui e ali, um "clin d'oeil", uma pitada de humor que resguarda, digamos, o lado humano dos personagens. Por vezes, acrescenta simbólicas corujas, gatos e cães, insinuando-os entre as pessoas como elementos cauterizados da solidão.
Há uma senhorial Madame, traços finos, carregada de jóias e dignidade, pontificando num recanto do salão. O clima sereno do quadro destoa da angústia que transborda ao redor. Angústia que enche os olhos e a alma do visitante. Angústia que nasce, talvez, de uma indignação interior: de quem é a culpa?
Ora, direis, a prostituição é fenômeno comum a todas as sociedades. Desde tempos imemoriais. Assim, de antemão, estamos todos redimidos dos currais e faróis que ameaçam com sifilítica pestilência os alicerces morais de nossa civilização ocidental e cristã. Convenhamos, porém, que nós soubemos acrescentar perversos, ingredientes a esse fenômeno social, tornando imoral o que poderia ser apenas amoral.
As telas de Descartes, acredito, despertam a consciência de que a prostituição nasce da hipocrisia de famílias ditas austeras, virtuosas, mas que encorajam a iniciação sexual dos seus filhos com criadinhas trazidas do Interior. Nasce do machismo que ainda condena ao limbo, em certos meios, a mãe solteira. Nasce da pobreza absurda em que vivem milhões de brasileiros, amontoados em completa promiscuidade, sem teto, sem pão, sem lei e sem grei.
Decartes mostra a "zona" e também os frutos do seu ventre: os meninos de rua que se atiram ávidos sobre o carro, onde um casal burguês aguarda apenas o sinal abrir para dar as costas novamente à miséria. O desdém da mulher que lê o horóscopo e do seu acompanhante, escondido atrás de escuras lentes, é o mesmo da nossa sociedade.
Diante dos dramas humanos que nos cercam, preferimos mergulhar na quimera do zodíaco, no mundo do faz-de-conta, onde a solução de todos os problemas está escrita nas estrelas. Confrontados em colocar um par de óculos escuros e pisar fundo no acelerador, deixando para trás a cinza, a esquina, o beco, o farol, o curral, ou qualquer outro lugar onde se diz que a mulher leva vida fácil. Ou vida alegre.

Jornal Diário do Nordeste - 17 de março de 1991
MAUC encerra exposição de Descartes Gadelha com musical
O Museu de Arte da UFC (Av. da Universidade, 2854, Benfica, telefone 281.3144) abre hoje das 16h às 20h com trêsexposições em cartaz e um musical às 19h que marca o encerramento de uma delas. "De um alguém para outro alguém" reúne pinturas de Descartes Gadelha e termina hoje com "apresentação de músicas e conversas do universo brega, numa complementação à exposição", de acordo com o informativo do MAUC.
"No salão encarnado" é o título do musical, que reúne a regente Isaíra Silvino, o músico Didi Morais e alunos do Departamento de Artes da UECE. As outras mostras em cartaz no MAUC reúnem gravuras, pinturas e desenhos de Antônio Bandeira, Aldemir Martins, Décio Vilares, Jean Pierre Chabloz, Raimundo Cela, Vicente Leite e Vitor Meireles e xilogravuras e gravuras em metal de alunos da Oficina de Gravura e Papel Artesanal do Museu de Arte da UFC.


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