O Ovo da Serpente’
‘O Ovo da Serpente’
PUBLICADO EM 14.02.2014
O
Ovo da Serpente é o nome de um filme de Ingmar Bergman que mostra os
conflitos e a desordem que antecederam a ascensão do nazismo. Vivemos um
momento complicado de violência, deboche, em que quase todos os
conflitos degeneram em agressões, incêndios: a democracia não anda bem
em nosso país. Ainda assim, acho inadequada a expressão ovo da serpente.
Não vejo na conjuntura internacional uma brecha para regimes
autoritários com o nível de inserção econômica e política do Brasil.
Mesmo porque a visão de Bergman do ovo da serpente pode não ser a única
para descrever a situação brasileira. Há serpentes e serpentes.
Se
fosse atribuir o ovo a algum réptil, diria que o processo de conflitos
está gestando uma iguana – uma situação esdrúxula em que todos podem
sair perdendo, mesmo quem sonha em se aproveitar dela.
As
mediações políticas acabaram. A democracia brasileira é um veículo sem o
jogo de molas, que avança aos solavancos ameaçado pelo perigo de
empacar. Carece de um lubrificante essencial: o diálogo. Os idos de
junho aprofundaram o abismo entre os partidos políticos e a sociedade.
Apesar da retórica populista, os políticos mergulharam no seu mundo,
perdidos nas transações fisiológicas.
Renan
Calheiros chegou aos limites do seu corpo implantando cabelos em
Pernambuco. Mas foi o mais perto da realidade exterior que conseguiu
aproximar-se. Os petistas decidiram questionar o Supremo de braços
erguidos e o clima de desafio só tende a enfraquecer o edifício
institucional.
Um
cinegrafista da Band foi atingido por um desses foguetes de fogo de
artifício. Atingido covardemente. O artefato tem uma vara e funciona
mais ou menos como um míssil terra-ar. Ao dispará-lo rente ao chão,
transforma-se num míssil terra-terra. Santiago morreu.
Com
instrumentos disponíveis no mercado é possível fazer uma guerra urbana.
Mas quem fere um cameraman se arrisca a ser ferido pelas próprias
câmeras, que revelam vários ângulos do atentado. Como diria Garrincha,
não combinaram com os russos. A televisão russa apresentou imagens que
mostram claramente como aconteceu o incidente. Inúmeras outras câmeras
cobriram o episódio, oferecendo detalhes. As próprias câmeras do
Exército, pois o episódio aconteceu perto do Comando, devem ter
registrado dados importantes.
Nunca
na história das manifestações, violentas ou não, houve tanta câmera em
ação, se contarmos também com os celulares. É possível desvendar tudo.
Nesse sentido, é um passo democrático. Mas quase nunca se pune depois do
fato desvendado. Isso é um atraso.
Não
foi acidental a presença de uma equipe russa no centro do Rio. Nosso
objetivo não era atrair a imprensa estrangeira para a gloriosa Copa do
Mundo? Uma vez aqui, não podem ignorar as manifestações nem, por
exemplo, o apagão e as dificuldades energéticas que vivemos. Claro,
podem acreditar no discurso de Lobão, para quem vivemos no melhor dos
mundos. Mesmo eles, com o tempo, acabarão percebendo que Lobão é apenas o
Lobão.
As
circunstâncias levam-nos a uma exposição em função da Copa, num momento
confuso que dificilmente será equacionado pelas eleições. Estas podem
agravá-lo. Muitos de seus temas desembocam na luta ideológica do século
passado. Com o caso da médica cubana que rompeu com o Mais Médicos.
O
pensamento mais clássico de esquerda considera natural que alguém
financiado retribua o investimento social feito nele. É possível aceitar
o programa Mais Médicos, mesmo admitindo sua limitação. É possível
aceitar a vinda de médicos estrangeiros, cubanos entre eles. É possível
até admitir que Cuba não lucre só com a diplomacia médica, pois montou
um esquema sanitário em lugares remotos do Haiti. Mas é difícil aceitar
que a relação de trabalho não se faça na base do consentimento
recíproco. O contrato com os cubanos, mesmo com a intenção de atender o
interior do País, importa mais um grande problema.
É
proibido proibir que se denunciem contratos de trabalho e que as
pessoas viajem para onde queiram. Quando o governo, ao tentar solucionar
um problema, cria um novo e complicado enredo, é sinal de que não
funciona como timoneiro, apenas indica que perdemos o rumo.
No
setor de energia, o discurso não é só o de Lobão descrevendo o melhor
dos mundos. É também o discurso da natureza incontrolável, constatação
que Lula atribuiu a Freud. Como caem os raios neste verão. Quando caem
na cabeça das pessoas simples, elas são fulminadas. Quando se esgotam no
estrondo e no clarão, servem de pretexto para explicar as lacunas da
nossa política energética.
O
consumo cresce, a produção de energia, detida por uma série de
obstáculos, não evolui como o planejado. E o verão ainda não acabou. Em
vez de reconhecer a realidade, o governo se perde na defensiva.
Não
vejo num ano eleitoral grandes mudanças na economia. Nem creio que
Dilma, diante do princípio de caos, fará mais do que convocar reuniões
que resultam, por sua vez, em comissões e grupos de trabalho.
O
veículo democrático está condenado aos solavancos. Mas o filme de
Bergman mostra algo importante. Acostumar-se com a violência cotidiana é
perigoso, pois esses fatos tendem a desembocar em algo pior. Um
adolescente no Flamengo, no Rio, preso por um cadeado foi mais um
episódio revelador do nível de intolerância que vivemos. Justiça pelas
próprias mãos, combates armados na rua, incêndios – tudo isso vai
sucedendo sem nenhum nexo com uma visão de mudança do País. Os que
sonham em apenas manter-se no poder se arriscam a perder, mesmo na
vitória eleitoral. Que País vai emergir desses confrontos cotidianos em
2014? Será governável apenas distribuindo cargos aos aliados?
A
resposta é sempre esta: está tudo bem, vocês é que são pessimistas, Com
sorriso profissional nos lábios, um marketing glorioso, cotoveladas e
rasteiras na rede, la nave và. Lobão dirá que há risco zero de apagão,
punhos erguidos para interpretar o mensalão, para a violência uma nova
comissão. Quanta rima, meu Deus, e nenhuma solução, como diria o poeta.
Artigo publicano no jornal O Estado de São Paulo em 14/02/2014
Foto nº 1 do arquivo de Marcos Sampaio
Foto nº do jornal O Estado de São Paulo
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