“Sou um humilde operário da vinha do Senhor”, foram as primeiras palavras de Bento XVI, aos 19 de abril de 2005, quando, logo após ser eleito Papa, apareceu na sacada da Basílica de São Pedro, com semblante sereno e tímido, acenando para a multidão que o saudava. Após uma jornada árdua e fecunda de oito anos, este “humilde operário” surpreende a Igreja e o mundo, causando comoção e reações diversas, ao comunicar a sua renúncia, no dia 11 de fevereiro. Na ocasião, agradeceu aos cardeais a colaboração recebida nestes anos e pediu-lhes perdão pelos seus “defeitos”. Após a renúncia, em 28 de fevereiro, o 265º Sucessor de Pedro, teólogo erudito, continuará a ser o “humilde operário da vinha do Senhor”, agora, através de “uma vida consagrada à oração”, segundo ele mesmo declarou.
Muito se tem falado e escrito sobre o significado do gesto inusitado de Bento XVI e suas implicações para a Igreja. “Surpresa” foi uma das palavras mais empregadas pelas pessoas, de coroinhas a cardeais, diante da renúncia do Papa. Embora Bento XVI já tivesse admitido a possibilidade da renúncia de um papa em entrevista e dela ser prevista pelo Direito Canônico, há seis séculos isso não ocorria. A passagem da sede plena para sede vacante tem ocorrido, quase sempre, na história da Igreja, pela morte do Papa; a outra modalidade, que é a renúncia, tem sido raríssima. A mais evocada tem sido a renúncia de Celestino V, cujo túmulo, Bento XVI quis visitar em sua passagem por Áquila, em 2009.
Passado o momento inicial de enorme surpresa, se multiplicam informações e análises a respeito do seu pontificado e das motivações da sua decisão, estampadas na mídia. Ao mesmo tempo, cresce a curiosidade a respeito do seu sucessor e os “papáveis” vão sendo eleitos a todo o momento em redes sociais, noticiários e programas televisivos. A renúncia do Papa tem recebido diferentes significados, segundo a ótica de quem os atribui. Contudo, alguns aspectos vão se tornando mais evidentes.
O espaço amplo e continuado recebido na mídia nacional e internacional faz pensar na relevância do Papa numa época em que o secularismo e o laicismo tendem a se globalizar. No Brasil, isso começou a ocorrer em pleno carnaval. Apesar das muitas gafes e imprecisões cometidas, é admirável o volume de informações lançadas, na mídia, a todo o momento sobre a renúncia, sinal da importância da figura do Papa na Igreja e no mundo, que ultrapassa a pessoa que ocupa a cátedra de Pedro. Pronunciamentos de líderes políticos e religiosos, de diferentes culturas e confissões religiosas, comprovam que o Papa continua a ser uma liderança mundial, sobretudo, no âmbito da justiça e da paz, o que aumenta ainda mais a sua responsabilidade.
Inúmeras pessoas tem ressaltado a grandeza do gesto de Bento XVI, especialmente, a sua humildade, coragem e amor à Igreja. Aquele que se declara fisicamente frágil, “devido à idade avançada”, segundo o seu comunicado da renúncia, se revela espiritualmente forte, pois somente um homem forte e corajoso seria capaz de um gesto tão exigente e impactante. Ele assumiu tal decisão, serenamente, de modo consciente e livre, “diante de Deus”, pelo bem da Igreja, pois reconhece que suas forças “já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino”. Num mundo marcado pela idolatria do poder, a renúncia de BentoXVI adquire especial sentido profético, interpelando aos que se apegam ao poder. O seu gesto é portador de valores; faz pensar sobre o sentido do poder como serviço, sobre a perenidade de valores éticos e espirituais fundamentais para a humanidade, em meio à provisoriedade deste mundo.
Neste contexto, muitos têm recordado a figura do saudoso papa João Paulo II, beatificado e admirado por Bento XVI, incorrendo no equívoco de contrapor as posturas de ambos, no final do pontificado. A aparente contradição se desfaz quando se tem presente que o modo de ambos procederem expressava o mesmo amor generoso pela Igreja. Os dois expressaram, por diferentes meios, segundo as circunstâncias e a personalidade de cada um, a busca incansável do bem da Igreja.
A missão do papa sempre será muito exigente e desgastante, pela sua amplitude, especialmente, diante dos desafios do mundo de hoje à missão evangelizadora da Igreja. A cruz que acompanha todo o cristão será sentida sempre com maior peso nos ombros do papa. Contudo, assim como, a vida cristã não pode ser reduzida à dimensão da cruz, a vida e a missão do Papa não podem ser reduzidas aos problemas e desafios encontrados dentro e fora da Igreja, durante o seu pontificado. Além disso, há desafios no atual contexto sociocultural, especialmente, na Europa, que ultrapassam o âmbito da Igreja Católica, interpelando as diversas Igrejas cristãs, isto é, o Cristianismo. O enfraquecimento da vivência cristã e do vínculo com as instituições religiosas, constatado na realidade europeia, desafia também as outras Igrejas cristãs, também aquelas com posturas mais liberais no campo moral. O que está em jogo, em última análise, é o sentido da vida e a relevância da fé cristã enquanto referencial para as pessoas e a sociedade. Análises simplistas ou reducionistas do pontificado de Bento XVI não permitem enxergar o seu real alcance, nem compreender o que ocorre com o Cristianismo como um todo na Europa e no mundo ocidental.
O Papa Bento XVI, tido como conservador, iniciou o seu pontificado surpreendendo a Igreja e o mundo com uma encíclica sobre o amor, a “Deus caritas est”. Nela, recorda que Deus é amor, explica o significado do amor cristão e define a Igreja como “comunidade de amor”. A primeira carta encíclica é considerada programática; inspira e traça rumos para o pontificado. O seu duro trabalho na Congregação para a Doutrina da Fé levava muita gente a esperar algo numa tradicional linha dogmática. Ele surpreendeu recordando o “dogma” mais antigo e sempre novo: “Deus é amor!” Está terminando o seu pontificado, surpreendendo, novamente a todos, não apenas com sua renúncia, mas também com outros gestos e pronunciamentos em que expressa a sua fé e o seu amor à Igreja. No seu último encontro com o clero de Roma, dia 14 de fevereiro, ao invés de um discurso formal, quis ter uma “conversa sobre o Concílio Vaticano II”, ora comovendo às lágrimas, ora causando risos, pelas histórias contadas sobre a sua participação, como perito, no Concílio. Assim afirmou: “temos que trabalhar para que o verdadeiro Concílio Vaticano II, com a força do Espírito Santo, se realize e seja renovada a Igreja”. Tal tarefa, a ser compartilhada pelo clero de Roma e pela Igreja no mundo inteiro, será continuada pelo 266º Sucessor de Pedro, o novo Sumo Pontífice a ser eleito no conclave, já tão esperado por todos. No dia 28 de fevereiro, Bento XVI deixará o palácio apostólico do Vaticano para entrar na história como o Papa que surpreendeu o mundo. O Brasil, que teve a graça de receber a visita de Bento XVI, em 2007, aguarda, ansiosamente, a visita do novo Papa na Jornada Mundial da Juventude, no final de julho deste ano.
Por Dom Sergio da Rocha, Arcebispo de Brasília
*Artigo escrito para o jornal Correio Braziliense, publicado no dia 17/02/2012
Muito se tem falado e escrito sobre o significado do gesto inusitado de Bento XVI e suas implicações para a Igreja. “Surpresa” foi uma das palavras mais empregadas pelas pessoas, de coroinhas a cardeais, diante da renúncia do Papa. Embora Bento XVI já tivesse admitido a possibilidade da renúncia de um papa em entrevista e dela ser prevista pelo Direito Canônico, há seis séculos isso não ocorria. A passagem da sede plena para sede vacante tem ocorrido, quase sempre, na história da Igreja, pela morte do Papa; a outra modalidade, que é a renúncia, tem sido raríssima. A mais evocada tem sido a renúncia de Celestino V, cujo túmulo, Bento XVI quis visitar em sua passagem por Áquila, em 2009.
Passado o momento inicial de enorme surpresa, se multiplicam informações e análises a respeito do seu pontificado e das motivações da sua decisão, estampadas na mídia. Ao mesmo tempo, cresce a curiosidade a respeito do seu sucessor e os “papáveis” vão sendo eleitos a todo o momento em redes sociais, noticiários e programas televisivos. A renúncia do Papa tem recebido diferentes significados, segundo a ótica de quem os atribui. Contudo, alguns aspectos vão se tornando mais evidentes.
O espaço amplo e continuado recebido na mídia nacional e internacional faz pensar na relevância do Papa numa época em que o secularismo e o laicismo tendem a se globalizar. No Brasil, isso começou a ocorrer em pleno carnaval. Apesar das muitas gafes e imprecisões cometidas, é admirável o volume de informações lançadas, na mídia, a todo o momento sobre a renúncia, sinal da importância da figura do Papa na Igreja e no mundo, que ultrapassa a pessoa que ocupa a cátedra de Pedro. Pronunciamentos de líderes políticos e religiosos, de diferentes culturas e confissões religiosas, comprovam que o Papa continua a ser uma liderança mundial, sobretudo, no âmbito da justiça e da paz, o que aumenta ainda mais a sua responsabilidade.
Inúmeras pessoas tem ressaltado a grandeza do gesto de Bento XVI, especialmente, a sua humildade, coragem e amor à Igreja. Aquele que se declara fisicamente frágil, “devido à idade avançada”, segundo o seu comunicado da renúncia, se revela espiritualmente forte, pois somente um homem forte e corajoso seria capaz de um gesto tão exigente e impactante. Ele assumiu tal decisão, serenamente, de modo consciente e livre, “diante de Deus”, pelo bem da Igreja, pois reconhece que suas forças “já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino”. Num mundo marcado pela idolatria do poder, a renúncia de BentoXVI adquire especial sentido profético, interpelando aos que se apegam ao poder. O seu gesto é portador de valores; faz pensar sobre o sentido do poder como serviço, sobre a perenidade de valores éticos e espirituais fundamentais para a humanidade, em meio à provisoriedade deste mundo.
Neste contexto, muitos têm recordado a figura do saudoso papa João Paulo II, beatificado e admirado por Bento XVI, incorrendo no equívoco de contrapor as posturas de ambos, no final do pontificado. A aparente contradição se desfaz quando se tem presente que o modo de ambos procederem expressava o mesmo amor generoso pela Igreja. Os dois expressaram, por diferentes meios, segundo as circunstâncias e a personalidade de cada um, a busca incansável do bem da Igreja.
A missão do papa sempre será muito exigente e desgastante, pela sua amplitude, especialmente, diante dos desafios do mundo de hoje à missão evangelizadora da Igreja. A cruz que acompanha todo o cristão será sentida sempre com maior peso nos ombros do papa. Contudo, assim como, a vida cristã não pode ser reduzida à dimensão da cruz, a vida e a missão do Papa não podem ser reduzidas aos problemas e desafios encontrados dentro e fora da Igreja, durante o seu pontificado. Além disso, há desafios no atual contexto sociocultural, especialmente, na Europa, que ultrapassam o âmbito da Igreja Católica, interpelando as diversas Igrejas cristãs, isto é, o Cristianismo. O enfraquecimento da vivência cristã e do vínculo com as instituições religiosas, constatado na realidade europeia, desafia também as outras Igrejas cristãs, também aquelas com posturas mais liberais no campo moral. O que está em jogo, em última análise, é o sentido da vida e a relevância da fé cristã enquanto referencial para as pessoas e a sociedade. Análises simplistas ou reducionistas do pontificado de Bento XVI não permitem enxergar o seu real alcance, nem compreender o que ocorre com o Cristianismo como um todo na Europa e no mundo ocidental.
O Papa Bento XVI, tido como conservador, iniciou o seu pontificado surpreendendo a Igreja e o mundo com uma encíclica sobre o amor, a “Deus caritas est”. Nela, recorda que Deus é amor, explica o significado do amor cristão e define a Igreja como “comunidade de amor”. A primeira carta encíclica é considerada programática; inspira e traça rumos para o pontificado. O seu duro trabalho na Congregação para a Doutrina da Fé levava muita gente a esperar algo numa tradicional linha dogmática. Ele surpreendeu recordando o “dogma” mais antigo e sempre novo: “Deus é amor!” Está terminando o seu pontificado, surpreendendo, novamente a todos, não apenas com sua renúncia, mas também com outros gestos e pronunciamentos em que expressa a sua fé e o seu amor à Igreja. No seu último encontro com o clero de Roma, dia 14 de fevereiro, ao invés de um discurso formal, quis ter uma “conversa sobre o Concílio Vaticano II”, ora comovendo às lágrimas, ora causando risos, pelas histórias contadas sobre a sua participação, como perito, no Concílio. Assim afirmou: “temos que trabalhar para que o verdadeiro Concílio Vaticano II, com a força do Espírito Santo, se realize e seja renovada a Igreja”. Tal tarefa, a ser compartilhada pelo clero de Roma e pela Igreja no mundo inteiro, será continuada pelo 266º Sucessor de Pedro, o novo Sumo Pontífice a ser eleito no conclave, já tão esperado por todos. No dia 28 de fevereiro, Bento XVI deixará o palácio apostólico do Vaticano para entrar na história como o Papa que surpreendeu o mundo. O Brasil, que teve a graça de receber a visita de Bento XVI, em 2007, aguarda, ansiosamente, a visita do novo Papa na Jornada Mundial da Juventude, no final de julho deste ano.
Por Dom Sergio da Rocha, Arcebispo de Brasília
*Artigo escrito para o jornal Correio Braziliense, publicado no dia 17/02/2012
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