sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A morte de um forte

Os sinos de Roma pararam de repicar. A horda de turistas buliçosos, que habitualmente compõe a paisagem da Praça de São Pedro, deu lugar a uma multidão de fiéis chorosos. Cerrou seus portões a basílica que, dominada pela cúpula desenhada por Michelangelo, se ergue como a oitava colina da capital italiana. É sempre assim quando morre um papa. Mas os sinais de luto ganharam uma dimensão ainda mais eloquente porque o papa era João Paulo II. Morreu o titã na luta contra o comunismo na Europa. Morreu o líder espiritual que desafiou os rumos liberalizantes da civilização ocidental. Morreu Karol Wojtyla, padre polonês de hábitos singelos e uma trajetória de resistência a dois flagelos do século passado: o nazismo e o comunismo. Morreu uma das maiores personalidades da história recente.
A paráfrase é banal, mas exata: João Paulo II foi, antes de tudo, um forte. Para bilhões de pessoas, não importa o credo que elas professem, a imagem a ser guardada na memória é a do homem de sorriso cativante, voz firme e andar resoluto que, em 1978, cancelou instantaneamente o trauma da morte de João Paulo I, morto 33 dias depois de eleito. Faz mais justiça ao papa morto relembrá-lo nos tempos de vigor, e não na decadência dos últimos anos, combalido e paralisado por causa da velhice e da doença. Quis o destino, sempre irônico, que o papa alpinista e esquiador, apelidado de Atleta de Deus, viesse a sofrer graves percalços físicos durante os 26 anos de seu pontificado, o terceiro mais longo da história (só São Pedro e Pio IX tiveram papados mais extensos). Em 1981, um tiro disparado contra ele pelo turco Ali Agca obrigou os médicos que o atenderam a cortar 30 centímetros de seu intestino. Em 1992, o papa foi submetido a uma cirurgia que retirou um tumor do tamanho de uma laranja da sua região abdominal. No fim do ano seguinte, João Paulo II quebrou a omoplata ao cair diante do corpo diplomático. Em 1994, outra queda, no banheiro de seus aposentos particulares, causou-lhe uma fratura de fêmur e o levou a implantar uma prótese. Tais acidentes, descobriu-se, eram manifestações do Parkinson, doença que o Vaticano tentou esconder quando do aparecimento dos primeiros sintomas e de cujas complicações o papa morreria, aos 84 anos, cinco semanas depois de sofrer uma traqueostomia. O procedimento, realizado para servir de paliativo a uma insuficiência respiratória, acabou por apagar de vez sua voz desde havia muito já débil. A última imagem de João Paulo II, registrada poucos dias antes de sua morte, é de uma pungência capaz de emocionar o mais duro coração ateu: mostra o papa à janela de seu apartamento privado, com uma expressão de dor, tentando balbuciar algumas palavras à multidão na Praça de São Pedro. Poucas vezes um silêncio foi tão eloqüente.
Ocultar os problemas de saúde de um pontífice é uma ocupação antiga dos cardeais mais proeminentes da Igreja. Tanto que há um ditado romano, muito espirituoso, segundo o qual todo papa tem a saúde de ferro até o dia de sua morte. Com João Paulo II, no entanto, foi impossível manter sua doença em segredo ou mascarar suas seqüelas. Nunca um papa teve sua agonia tão comentada, fotografada e filmada. Isso porque nunca houve um papa tão comentado, fotografado e filmado. João Paulo II passa à história também como o papa da mídia. Em missas solenes, em audiências com poderosos, em encontros com chefes de outras religiões, em férias e nas 250 viagens que realizou, dentro e fora da Itália, ele usou como nenhum outro pontífice da era moderna os meios de comunicação de massa. Santos podem ser ubíquos; João Paulo II era uma imagem eletrônica onipresente nos quatro cantos do mundo. Para alguns analistas, essa exposição extrema, aliada ao carisma, fez com que sua personalidade se sobrepusesse à religião, transformando-o num ícone popular. De fato, um dado corrobora a tese: uma pesquisa realizada em meados da década de 90 revelou que o rosto do papa polonês era o mais conhecido do planeta.

Talvez por te sido ator na juventude, João Paulo II sabia a importância de determinados efeitos sobre a platéia. Foi o primeiro papa de quem se viram os pés, o que lhe emprestou maior humanidade. Em cerimônias que reuniam grandes multidões, e marcadas por uma certa informalidade, permitia-se fazer piadas e até ensaiar passos de dança. Muitas de suas vestes litúrgicas eram especialmente desenhadas para combinar com o caráter deste ou daquele evento. Mas ele também sabia enfrentar e dominar multidões belicosas, como a que o recebeu na Nicarágua sandinista, na década de 80. O papa dos efeitos especiais era também aquele para quem o conteúdo da doutrina estava acima de todas as coisas. Inflexível com os esquerdistas que queriam contaminar a doutrina católica com preceitos marxistas, ele exterminou a Teologia da Libertação na América Latina. Agastado com as brechas liberais que tentavam abrir no monumento dogmático que guia a Igreja há dois milênios, João Paulo II tratou de pôr rédeas curtas em seus artífices, o clero americano e o europeu. Para os detratores do papa que morreu, ele foi um "reacionário". Trata-se de um simplismo. Como escreveu o jornalista francês Bernard Lecomte, autor de uma das melhores biografias de João Paulo II, "suas posições sobre a família e a moral sexual, sobre o papel da mulher na Igreja, sobre a liturgia e a disciplina eclesial muitas vezes o levaram a ser considerado reacionário. Mas este mesmo papa também terá sido um progressista audacioso, e mesmo provocador, que não hesitou em convocar a seu redor todas as religiões do mundo, a condenar firmemente os desmandos do capitalismo e os desvios do liberalismo, a rejeitar sem rodeios a herança anti-semita de seus antecessores, a pedir perdão pelos erros e crimes da Igreja de outros tempos. Este papa ao mesmo tempo de esquerda e de direita, no sentido político dessa classificação, terá sido, no que diz respeito à Igreja, um continuador e um inovador".
João Paulo II ultrapassou as fronteiras do roteiro canônico, ao lançar cinco livros em linguagem dirigida ao grande público, dos quais o derradeiro é Memória e Identidade, e gravar três discos, com orações e canções religiosas, um deles com arranjos pop.
Quando era o Atleta de Deus, forte e saudável, posava para fotos esquiando e escalando montanhas. Depois de doente, ao continuar desempenhando seu papel de trabalhador incansável, adquiriu aos olhos dos fiéis a imagem de um homem dotado de extraordinária força interior – e revogou o ditado romano segundo o qual todo papa tem a saúde de ferro até o dia de sua morte. Ele resistiu com bravura à degeneração física e mental causada pela doença que se transformaria em seu gólgota. Acometido por tremores, dificuldades de fala e por uma rigidez muscular progressiva, ainda assim ele procurou manter até o fim seu estafante ritmo de atividades. O resultado desse esforço foi que seu sofrimento, ele próprio, tornou-se uma poderosa mensagem religiosa. Mensagem que, não raro, era intensa demais até mesmo para as câmeras onívoras da televisão. Nos últimos anos, a TV italiana, encarregada de filmar cerimônias protagonizadas pelo papa doente, tinha de se desdobrar para não colocar no ar cenas constrangedoras, como as de um João Paulo II muitas vezes completamente alienado ou incapaz de completar uma frase. Seu declínio físico era tão grande que se esperava que ele renunciasse logo depois das comemorações do jubileu do ano 2000. Essa possibilidade surgiu no noticiário em 1996, quando João Paulo II incluiu na lei eleitoral que rege o conclave, a assembléia de cardeais que escolhe um novo papa, a hipótese de renúncia do pontífice. Antes disso, ele já havia dito em público que "seria bom que o papa pudesse assistir à eleição de seu sucessor". Para os católicos que professam a religião e admiravam João Paulo II (e os admiradores certamente são maioria num rebanho de fiéis estimado em 1 bilhão de pessoas), ele assistirá, sim, à eleição do novo papa. Mas de um lugar privilegiado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário