A morte de um forte
Os sinos de Roma pararam de repicar. A horda de turistas buliçosos, que habitualmente compõe a paisagem da Praça de São Pedro, deu lugar a uma multidão de fiéis chorosos. Cerrou seus portões a basílica que, dominada pela cúpula desenhada por Michelangelo, se ergue como a oitava colina da capital italiana. É sempre assim quando morre um papa. Mas os sinais de luto ganharam uma dimensão ainda mais eloquente porque o papa era João Paulo II. Morreu o titã na luta contra o comunismo na Europa. Morreu o líder espiritual que desafiou os rumos liberalizantes da civilização ocidental. Morreu Karol Wojtyla, padre polonês de hábitos singelos e uma trajetória de resistência a dois flagelos do século passado: o nazismo e o comunismo. Morreu uma das maiores personalidades da história recente.
A paráfrase é banal, mas exata: João Paulo II foi, antes de tudo, um forte. Para bilhões de pessoas, não importa o credo que elas professem, a imagem a ser guardada na memória é a do homem de sorriso cativante, voz firme e andar resoluto que, em 1978, cancelou instantaneamente o trauma da morte de João Paulo I, morto 33 dias depois de eleito. Faz mais justiça ao papa morto relembrá-lo nos tempos de vigor, e não na decadência dos últimos anos, combalido e paralisado por causa da velhice e da doença. Quis o destino, sempre irônico, que o papa alpinista e esquiador, apelidado de Atleta de Deus, viesse a sofrer graves percalços físicos durante os 26 anos de seu pontificado, o terceiro mais longo da história (só São Pedro e Pio IX tiveram papados mais extensos). Em 1981, um tiro disparado contra ele pelo turco Ali Agca obrigou os médicos que o atenderam a cortar 30 centímetros de seu intestino. Em 1992, o papa foi submetido a uma cirurgia que retirou um tumor do tamanho de uma laranja da sua região abdominal. No fim do ano seguinte, João Paulo II quebrou a omoplata ao cair diante do corpo diplomático. Em 1994, outra queda, no banheiro de seus aposentos particulares, causou-lhe uma fratura de fêmur e o levou a implantar uma prótese. Tais acidentes, descobriu-se, eram manifestações do Parkinson, doença que o Vaticano tentou esconder quando do aparecimento dos primeiros sintomas e de cujas complicações o papa morreria, aos 84 anos, cinco semanas depois de sofrer uma traqueostomia. O procedimento, realizado para servir de paliativo a uma insuficiência respiratória, acabou por apagar de vez sua voz desde havia muito já débil. A última imagem de João Paulo II, registrada poucos dias antes de sua morte, é de uma pungência capaz de emocionar o mais duro coração ateu: mostra o papa à janela de seu apartamento privado, com uma expressão de dor, tentando balbuciar algumas palavras à multidão na Praça de São Pedro. Poucas vezes um silêncio foi tão eloqüente.
Ocultar os problemas de saúde de um pontífice é uma ocupação antiga dos cardeais mais proeminentes da Igreja. Tanto que há um ditado romano, muito espirituoso, segundo o qual todo papa tem a saúde de ferro até o dia de sua morte. Com João Paulo II, no entanto, foi impossível manter sua doença em segredo ou mascarar suas seqüelas. Nunca um papa teve sua agonia tão comentada, fotografada e filmada. Isso porque nunca houve um papa tão comentado, fotografado e filmado. João Paulo II passa à história também como o papa da mídia. Em missas solenes, em audiências com poderosos, em encontros com chefes de outras religiões, em férias e nas 250 viagens que realizou, dentro e fora da Itália, ele usou como nenhum outro pontífice da era moderna os meios de comunicação de massa. Santos podem ser ubíquos; João Paulo II era uma imagem eletrônica onipresente nos quatro cantos do mundo. Para alguns analistas, essa exposição extrema, aliada ao carisma, fez com que sua personalidade se sobrepusesse à religião, transformando-o num ícone popular. De fato, um dado corrobora a tese: uma pesquisa realizada em meados da década de 90 revelou que o rosto do papa polonês era o mais conhecido do planeta.
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