IRACEMA E
LUZIA-HOMEM: ARQUÉTIPOS FEMININOS DA LITERATURA CEARENSE.
José de Alencar e
Domingos Olímpio tiveram cada qual a sua época um papel decisivo na literatura
cearense e brasileira. O primeiro inspirou sua obra em um tempo em que a
identidade do Brasil era formada enquanto que o outro optou narrar a bravura já
nascente da mulher cearense no período causticante da seca.
Iracema e Luzia-Homem. Duas abordagens diferentes de arquétipos femininos mas tendo em comum a característica mais definidora de heroína cearense, a força.
Enquanto Iracema ama desapegadamente o europeu português, e chora sua partida percorrendo as margens da lagoa de Messejana:
"Tão rápido partia de manhã, como lenta voltava à tarde. Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Parangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, na margem do rio, chamavam aquele sítio de Messejana, que significa a abandonada".
A brava Luzia-Homem recorda triste já distante sua terra:
"Ao espetáculo do alvorecer sem alegria, o campo desolado, sem cântico de pássaros e rumores harmoniosos do trabalho venturoso e fecundante, ela revia sua infância na fazenda Ipueiras: a campina verdejante umedecida de orvalho congregando no côncavo das folhas em gotas trêmulas".
A índia tabajara desconhece a seca, sua batalha embora exterior se projeta do interior em busca do amor. A retirante de Domingos Olímpio procura sobreviver e nesta luta aprende a bravura dos homens, não perdendo sua feminilidade mas tornando-se mais forte do que a cruel realidade ditada pelas secas já vividas.
Quando o primeiro cearense nasce o guerreiro está distante, mas Iracema alimenta Moacir (filho do sofrimento) até que as tetas neguem o leite e passem a brotar sangue. Luzia-Homem entrega seus sonhos ao futuro incerto de retirante, sempre encontrando nos povoados em que se abriga a sensação de desamparo.
A serra da Ibiapaba está nos dois livros presentes, em Iracema vem da serra a água fresca que lhe banha o corpo e esverdeia toda mata conhecida pela índia. É na citação da serra no início do capítulo segundo, que o autor nos apresenta sua personagem:
"Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira".
Em Luzia-Homem ela é vista como um Eldorado distante, sempre a marcar as noites com relâmpagos que prenunciam de acordo com o tempo o período chuvoso ou a escassez vindoura:
"Olhares ansiosos procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a pestanejarem no rumo do Piauí, desvelando o perfil negro da Ibiapaba. Nada; nem o mais ligeiro prenúncio das chuvas de caju".
José de Alencar de forma sutil descreve com esmero a simbiose da nativa ao ambiente:
"Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-se o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto".
Domingos Olímpio narra em Luzia-Homem uma passagem curiosa e nativa:
"...Veja só. Ninguém está contente com a sua sorte... Eu tenho usado tudo quanto me ensinam; óleo de coco, enxúndia de galinha, uma porção de porcarias... Cheguei até a botar nos meus, remédios de botica. Foi mesmo que nada... Sempre ficaram nestes rabichos que nem me chega às cadeiras...
- Enfim, cada um como Deus o fez...
- Porque não os ensaboas com raspa de juá? Todas as moças, na redondeza das Ipueiras, tem cabelos lindos, que crescem depressa - dizem - por causa da água de lá, que é virtuosa, de tal raspa..."
No primeiro trecho a índia comunga com a natureza em harmonia, recebendo dela o que de graça está lhe dando, no segundo já há uma influência do naturalismo fugindo do lirismo em que se desenvolve o romance alencarino, a natureza dá mas tem que ser colhida.
O luar é uma presença constante e quase ritual nas duas obras:
"A Lua das flores vai nascer. É o tempo da festa, em que os guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado, e recebem do Pajé os sonhos alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreiro branco deixará os campos de Ipu, e os olhos de Iracema, mas sua alma, não".
Em Luzia-Homem:
"- Que bonito luar, Luzia. Dá vontade à gente de passar a noite em claro. Como está bem visível. São Jorge e o cavalo empinado. Diziam-me um tapuio velho da serra Grande que a lua protege a quem quer bem. Quando uma tapuia gentia tinha saudades do marido ausente, olhava para ela, e lá lhe aparecia o retrato da criatura querida, ou nela casavam, conduzidas pelos olhares, as almas do par, separado por léguas de distância".
Existe no entanto a harmonia de dois arquétipos feminos entre os romances apresentados e mesmo o primeiro sendo um conto romântico e o segundo uma narrativa de caráter naturalista, a própria feminilidade e a sua força são um elo inquestionável entre as duas protagonistas.
Enquanto o romantismo permeia a história de Iracema, levando-nos a caminhar por disputas entre o índio e o branco conquistador. A realidade mais cruenta do sertanejo nos é imposta por Domingos Olímpio na saga da sua heroína que de forma rude se impõe perante o clima hostil da seca e sua humilhante condição de retirante maltrapilha.
Iracema e Luzia-Homem amam, sofrem e morrem de forma dramática mas corajosa.
José de Alencar escreveu: "Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu, como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como a dor tinha consumido seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá".
Domingos Olímpio assim narra a morte de Luzia-Homem: "Luzia conchegou ao peito as vestes dilaceradas, e com a destra, tentou lhe garrotear o pescoço; mas, sentiu-se presa pelos cabelos e conchegada ao soldado que, em convulsão horrenda, delirante, a ultrajava com uma voracidade comburulente de beijos. Súbito, ela lhe cravou as unhas no rosto para afastá-lo e evitar o contato afrontoso.
Dois gritos medonhos restrugiram na grota. Grapiúna louco de dor, embebera-lhe no peito a faca, e caía com o rosto mutilado, deforme, encharcado de sangue.
- Mãezinha! ... - balbuciou Luzia, abrindo os braços e caindo, de costas, sobre as lajes".
Iracema foi publicado em 1865. Na época do lançamento do livro, Ipu já era um próspero município, mas ainda guardando como precioso tesouro a Bica feito um véu de noiva que a índia tabajara se banhava para tirar o suor salgado das praias do litoral quando no sítio chegava. Domingos Olímpio ao colocar como lugar de forjamento da índole forte e batalhadora de Luzia Homem a fazenda Ipueiras, lançou mão da mesma estratégia de seu conterrâneo, regressou a um período mais próximo da história cearense, fato este ao se constatar que no ano de lançamento de Luzia Homem (1903), a fazenda Ipueiras já não mais existia, havia se tornado município em 1883, completando na época vinte anos de municipalidade, ambos os autores remontaram as origens primitivas dos sítios em que desejavam narrar suas tramas. .
Iracema e Luzia-Homem são os dois arquétipos femininos mais fortes presentes na literatura cearense, são protagonistas de tramas cativantes e dolorosas e por isso merecedoras de respeito e estudo a todos que amam a boa literatura.
Iracema e Luzia-Homem. Duas abordagens diferentes de arquétipos femininos mas tendo em comum a característica mais definidora de heroína cearense, a força.
Enquanto Iracema ama desapegadamente o europeu português, e chora sua partida percorrendo as margens da lagoa de Messejana:
"Tão rápido partia de manhã, como lenta voltava à tarde. Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Parangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, na margem do rio, chamavam aquele sítio de Messejana, que significa a abandonada".
A brava Luzia-Homem recorda triste já distante sua terra:
"Ao espetáculo do alvorecer sem alegria, o campo desolado, sem cântico de pássaros e rumores harmoniosos do trabalho venturoso e fecundante, ela revia sua infância na fazenda Ipueiras: a campina verdejante umedecida de orvalho congregando no côncavo das folhas em gotas trêmulas".
A índia tabajara desconhece a seca, sua batalha embora exterior se projeta do interior em busca do amor. A retirante de Domingos Olímpio procura sobreviver e nesta luta aprende a bravura dos homens, não perdendo sua feminilidade mas tornando-se mais forte do que a cruel realidade ditada pelas secas já vividas.
Quando o primeiro cearense nasce o guerreiro está distante, mas Iracema alimenta Moacir (filho do sofrimento) até que as tetas neguem o leite e passem a brotar sangue. Luzia-Homem entrega seus sonhos ao futuro incerto de retirante, sempre encontrando nos povoados em que se abriga a sensação de desamparo.
A serra da Ibiapaba está nos dois livros presentes, em Iracema vem da serra a água fresca que lhe banha o corpo e esverdeia toda mata conhecida pela índia. É na citação da serra no início do capítulo segundo, que o autor nos apresenta sua personagem:
"Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira".
Em Luzia-Homem ela é vista como um Eldorado distante, sempre a marcar as noites com relâmpagos que prenunciam de acordo com o tempo o período chuvoso ou a escassez vindoura:
"Olhares ansiosos procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a pestanejarem no rumo do Piauí, desvelando o perfil negro da Ibiapaba. Nada; nem o mais ligeiro prenúncio das chuvas de caju".
José de Alencar de forma sutil descreve com esmero a simbiose da nativa ao ambiente:
"Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-se o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto".
Domingos Olímpio narra em Luzia-Homem uma passagem curiosa e nativa:
"...Veja só. Ninguém está contente com a sua sorte... Eu tenho usado tudo quanto me ensinam; óleo de coco, enxúndia de galinha, uma porção de porcarias... Cheguei até a botar nos meus, remédios de botica. Foi mesmo que nada... Sempre ficaram nestes rabichos que nem me chega às cadeiras...
- Enfim, cada um como Deus o fez...
- Porque não os ensaboas com raspa de juá? Todas as moças, na redondeza das Ipueiras, tem cabelos lindos, que crescem depressa - dizem - por causa da água de lá, que é virtuosa, de tal raspa..."
No primeiro trecho a índia comunga com a natureza em harmonia, recebendo dela o que de graça está lhe dando, no segundo já há uma influência do naturalismo fugindo do lirismo em que se desenvolve o romance alencarino, a natureza dá mas tem que ser colhida.
O luar é uma presença constante e quase ritual nas duas obras:
"A Lua das flores vai nascer. É o tempo da festa, em que os guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado, e recebem do Pajé os sonhos alegres. Quando estiverem todos adormecidos, o guerreiro branco deixará os campos de Ipu, e os olhos de Iracema, mas sua alma, não".
Em Luzia-Homem:
"- Que bonito luar, Luzia. Dá vontade à gente de passar a noite em claro. Como está bem visível. São Jorge e o cavalo empinado. Diziam-me um tapuio velho da serra Grande que a lua protege a quem quer bem. Quando uma tapuia gentia tinha saudades do marido ausente, olhava para ela, e lá lhe aparecia o retrato da criatura querida, ou nela casavam, conduzidas pelos olhares, as almas do par, separado por léguas de distância".
Existe no entanto a harmonia de dois arquétipos feminos entre os romances apresentados e mesmo o primeiro sendo um conto romântico e o segundo uma narrativa de caráter naturalista, a própria feminilidade e a sua força são um elo inquestionável entre as duas protagonistas.
Enquanto o romantismo permeia a história de Iracema, levando-nos a caminhar por disputas entre o índio e o branco conquistador. A realidade mais cruenta do sertanejo nos é imposta por Domingos Olímpio na saga da sua heroína que de forma rude se impõe perante o clima hostil da seca e sua humilhante condição de retirante maltrapilha.
Iracema e Luzia-Homem amam, sofrem e morrem de forma dramática mas corajosa.
José de Alencar escreveu: "Pousando a criança nos braços paternos, a desventurada mãe desfaleceu, como a jetica se lhe arrancam o bulbo. O esposo viu então como a dor tinha consumido seu belo corpo; mas a formosura ainda morava nela, como o perfume na flor caída do manacá".
Domingos Olímpio assim narra a morte de Luzia-Homem: "Luzia conchegou ao peito as vestes dilaceradas, e com a destra, tentou lhe garrotear o pescoço; mas, sentiu-se presa pelos cabelos e conchegada ao soldado que, em convulsão horrenda, delirante, a ultrajava com uma voracidade comburulente de beijos. Súbito, ela lhe cravou as unhas no rosto para afastá-lo e evitar o contato afrontoso.
Dois gritos medonhos restrugiram na grota. Grapiúna louco de dor, embebera-lhe no peito a faca, e caía com o rosto mutilado, deforme, encharcado de sangue.
- Mãezinha! ... - balbuciou Luzia, abrindo os braços e caindo, de costas, sobre as lajes".
Iracema foi publicado em 1865. Na época do lançamento do livro, Ipu já era um próspero município, mas ainda guardando como precioso tesouro a Bica feito um véu de noiva que a índia tabajara se banhava para tirar o suor salgado das praias do litoral quando no sítio chegava. Domingos Olímpio ao colocar como lugar de forjamento da índole forte e batalhadora de Luzia Homem a fazenda Ipueiras, lançou mão da mesma estratégia de seu conterrâneo, regressou a um período mais próximo da história cearense, fato este ao se constatar que no ano de lançamento de Luzia Homem (1903), a fazenda Ipueiras já não mais existia, havia se tornado município em 1883, completando na época vinte anos de municipalidade, ambos os autores remontaram as origens primitivas dos sítios em que desejavam narrar suas tramas. .
Iracema e Luzia-Homem são os dois arquétipos femininos mais fortes presentes na literatura cearense, são protagonistas de tramas cativantes e dolorosas e por isso merecedoras de respeito e estudo a todos que amam a boa literatura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário