A Mãe de Iracema
Em nenhum momento no romance temos notícia de quem seja a mãe da heroína dos
lábios de mel. Nota-se, já na dedicatória, que a “mãe” de Iracema é a própria
terra cearense a quem o livro é endereçado.
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no
tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito
narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a
existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha,
uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre,
portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi
produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que
se manifestou plenamente. Os personagens são conhecidos pelo que fizeram no
tempo prestigioso dos “primórdios” [...] (ELIADE: 1972, p. 11)
Iracema é a guardiã do “Segredo da jurema”, e por esse motivo não poderia se
entregar ao amor que sentia por Martim, deveria manter-se pura para fabricar
para o Pajé a bebida de Tupã, pois nela estava o segredo do sonho .
“- Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da
jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã.”
(ALENCAR: 1994, p. 14)
“Jurema é uma árvore, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo,
de cheiro ocre, do qual, juntamente com as folhas e outros ingredientes,
preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito do haxixe, de produzir
sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa sentia com delícias e como se fossem
realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico. A
fabricação desse licor era uma segredo, explorado pelos Pajés, em proveito de
sua influência. Jurema é composto de ju – espinho, e rema – cheiro
desagradável.” (SEABRA, apud ALENCAR: 1994, p. 14)
Os rituais eram uma constante entre os indígenas, e essa religiosidade é bem
marcada em Iracema. “[...] Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem,
batia a dança em torno a rude cadência. O Pajé inspirados conduzia o sagrado
tripúdio e dizia ao povo crente os segredos de Tupã.” (ALENCAR: 1994, p.14).
“Vemos, pois que a ‘história’ narrada pelo mito constitui um ‘conhecimento’ de
ordem esotérica, não só por ser secreto e transmitido durante uma iniciação,
mas também porque esse ‘conhecimento’ é acompanhado de um poder
mágico-religioso. Com efeito, conhecer a origem de um objeto, de um animal, de
uma planta, etc., equivale a adquirir sobre eles um poder mágico, graças ao
qual se consegue dominá-los, multiplicá-los ou reproduzi-los sempre que se
quer.” (ELIADE: 1963, p. 20)
O noivo de Iracema
Martim Soares Moreno é um personagem histórico. Cabo português (embora nascido
no Rio Grande do Norte), lutou contra holandeses e é considerado o “ fundador”
do Ceará. Lutou ao lado de Felipe Camarão, nome cristão do índio Poti, da tribo
dos Pitiguaras, amigos dos portugueses – enquanto os Tabajaras, tribo de
Iracema, eram amigos dos franceses.
Martim, cujo nome significa “marte, deus da guerra”, aparece como portador das
virtudes cavalheirescas, embora, desde o início, apresente-se a Iracema como
inimigo: “sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do
Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os Pitiguaras, inimigos de sua nação.” (
ALENCAR: 1994, p. 13)
Martim e Iracema vivem uma história de amor, como é típico dos romances
românticos. Uma relação marcada pelo desnivelamento, ocorrendo transgressões –
Iracema quebra o juramento e perde a virgindade, e Martim rompe com código de
honra da hospitalidade; entretanto o amor é somente uma máscara para ocultar a
integração entre raças diferentes. O indianismo de Alencar, em consonância com
o indianismo romântico, na busca da valorização do selvagem, em verdade, quer
valorizar o ponto de vista do branco, prevalecendo a ótica do colonizador. “O
estrangeiro é o senhor da cabana de Araquém” (ALENCAR: 1994, p.12). Martim não
se deixa envolver totalmente pela índia; Iracema é sedutora, mas acaba sendo a grande
seduzida, deixando-se “morrer de amor” por seu esposo, que andava alheio,
sempre olhando para o mar, pensando na terra natal e na virgem loura. O que nos
remete a Mircea Eliade:
Tudo indica que fenômenos desse gênero tendem a tornar-se cada vez mais raros.
Supõe-se que o “comportamento mítico” das antigas colônias desaparecerá depois
que adquirirem sua independência política. Mas, o que irá suceder num futuro
mais ou menos distante não nos ajudará a compreender o que passou. O que antes
de tudo nos interessa é captar o sentido dessas estranhas formas de conduta,
compreender a causa e a justificação desses excessos. Compreendê-las equivale a
reconhecê-las como fenômenos humanos, fenômenos de cultura, criação do espírito
– e não como irrupção patológica de instintos, bestialidade ou infantilidade.
Os próprios excessos orgiásticos tinham um significado, pois, segundo o mito,
ao despontar da Nova Era, todas as mulheres pertencerão a todos os homens [...]
(ELIADE: 1972, p. 9)
José de Alencar, no posfácio, explica as pesquisas que andou fazendo para que a
linguagem de Iracema procurasse, com simplicidade e lirismo, estar adequada ao
assunto. Os símiles indicam o temperamento poético, emotivo, e o aproveitamento
das imagens americanas configuram a cor local dos românticos. A busca dos mitos
e elementos nacionais era uma forma de os românticos reforçarem a idéia de
independência cultural do país.
O autor é um excelente escritor; sua capacidade descritiva ao montar os
cenários provoca leitura sensorial, conseguindo, manter o leitor preso ao
texto: isso acontece porque ele utiliza a metáfora com muita perfeição. Mas
Alencar é machista, conservador, latifundiário, senhoril e dominador
escravocrata convicto. Por sua ascendência portuguesa, considera os lusitanos
como os grandes responsáveis pela formação de nossa raça.
Assim, Iracema, numa leitura mais crítica, apresenta duas imagens distintas:
como donzela romântica, é virgem, pudica, objeto de desejo masculino e deve ser
preservada como tal; mas ao mesmo tempo, Alencar é machista e cria a imagem de
uma mulher indutora do pecado. Numa metáfora bíblica e numa visão machista, ela
é Eva. O licor da Jurema é a metáfora da maçã. Araquém é a metáfora de Deus. As
terras do Ceará representam o Éden.
Ao mesmo tempo Iracema é o retrato fiel da mulher romântica: escrava,
obediente, subserviente, dominada, nascida para sofrer2. Iracema é o anagrama
da palavra América: jovem, linda e desejada pelo povo europeu; Martim é
metáfora da Europa: dominador, branco que chega e impõe sua cultura.
Nessa relação histórica entre dominador e dominado, a figura destoante é o
cacique Irapuã, o portador de sentimento nacionalista verdadeiro, chamado
lusofobia. Embora antipático, ele simboliza o nativo digno, que optou pela
morte, mas não se entregou ao civilizado. É certo que estava movido pelo ciúme,
mas é claramente justificável: Iracema traiu a tribo, traiu a raça, traiu o que
havia de mais sagrado e permitiu aos Pitiguaras arrasar os Tabajaras, seus
irmãos. Sob a ótica romântica, ela o fez por amor, o amor deve ser colocado
acima do bem e do mal. Já Caubi, irmão de Iracema, é um crápula porque permitiu
e protegeu um invasor dentro de sua tribo. Poti, amigo de Martim, sujeita-se a
correr riscos pela amizade e, quando fogem os três, quer que Martim, que nunca
respondeu a Iracema quem era a virgem loura portuguesa de castos afetos,
abandone Iracema; aliás, ele mesmo é monossilábico com Iracema., mas jamais
deixou Poti sem resposta. Assim, a destruição dos Tabajaras é necessária para
facilitar a colonização portuguesa.
Alencar foi extremamente feliz com sua lenda, um canto de amor ao Ceará. Mas
aos olhos da história política brasileira, numa análise mais profunda, cometeu
uma grande injustiça com a raça indígena, ao valorizar excessivamente o português.
Mas, como o livro é romântico, prevalece a proposta romântica, e Iracema não é
apenas uma índia: é modelo cultural da mulher brasileira que freqüenta o nosso
imaginário. É símbolo mítico de brasilidade, símbolo de tropicalidade e de
sensualidade.
Em outras palavras: Iracema retrata a época da colonização brasileira,
retomando os mitos característicos da literatura informativa.
Assim, o texto de José de Alencar é composto de inúmeros aspectos míticos - o
mito de origem, conforme Eliade (1972, p. 26), “conta e justifica uma ‘situação
nova’ – nova no sentido de que não existia desde o início do Mundo. Os mitos de
origem prolongam e completam o mito cosmogônico: eles contam como o Mundo foi
modificado, enriquecido ou empobrecido”; o mito do herói que, segundo Eliade
(1963, p. 155) “satisfaz as nostalgias secretas do homem moderno que,
sabendo-se condenado e limitado, sonha um dia revelar-se como uma ‘personagem
excepcional’, um ‘herói”; os mitos indígenas passando por nosso folclore, como
é o caso do Curupira (espírito das trevas: meninos maus); os rituais sagrados.
Para Moisés (19-, p. 342) “do ponto de vista antropológico e filosófico, o mito
é encarado como a palavra que designa um estágio do desenvolvimento humano
anterior à história, à lógica, à arte.” A mitologia volta-se para as questões
eternas da humanidade ajudando o indivíduo e a sociedade a harmonizar-se às
circunstâncias da vida.
Iracema é, assim, uma história que retrata a origem mítica do povo brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário