quinta-feira, 30 de julho de 2015

Delmiro Gouveia.

Em Coronel Delmiro Gouveia, história do industrial é contada a partir do ponto de vista de sua esposa, Carmela, do próprio Delmiro, de um de seus sócios e ainda de um de seus funcionários
Geraldo Sarno não sabia quem era Delmiro Gouveia. Foi em 1967, durante uma espécie de expedição pelo sertão nordestino, que o documentarista baiano entrou em contato, pela primeira vez, com a história do industrial cearense. "Estava com um projeto para fazer dez documentários sobre a cultura popular nordestina. Percorremos Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará", rememora o cineasta.
Das andanças pela região, Sarno conta que surgiram quatro filmes: Vitalino Lampião, Os Imaginários, Jornal Sertão e Eu Carrego o Sertão Dentro de Mim. Foi em meio a esse processo que, numa visita à Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), o cineasta se deparou com um busto em homenagem a Delmiro Gouveia. Curioso, perguntou ao vigia da hidrelétrica quem era o homem retratado na escultura.
"Tomei um susto quando soube de tudo aquilo", diz Sarno sobre as primeiras impressões que teve ao conhecer a trajetória de Delmiro. Em busca de mais histórias sobre o industrial, o cineasta também esteve na cidade alagoana de Delmiro Gouveia, onde encontrou em ruínas a Usina de Angiquinho, a casa na qual Delmiro havia morado e o que havia restado da Fábrica da Pedra.
Entre o primeiro contato com a história do industrial sertanejo e o início das filmagens de Coronel Delmiro Gouveia uma década se passou. Embora se firmando como documentarista Sarno preferiu retratar a trajetória de Delmiro por meio de um filme ficcional. "Resolvi fazer uma ficção porque a história era muito forte", rememora ele.
Delmiro e a reinvenção do Sertão
Nascido no Ceará, Delmiro Gouveia cresceu no Recife do século 19, então um dos mais importantes centros urbanos e comerciais do Brasil
Um ’incidente emocional’ motivou a fuga de Delmiro do Recife para Alagoas, em 1900
Modernizador do sertão. Rei das peles. Pioneiro de Paulo Afonso. Estas são apenas algumas das denominações recebidas por Delmiro Gouveia (1863-1917). Natural de Ipu, no Ceará, o industrial cresceu no Recife do século 19, um importante centro comercial e cultural não apenas para o Nordeste, mas também para todo o Brasil da época. E ainda que tenha ascendido socialmente na capital pernambucana, foi em Alagoas que Delmiro ergueu o mais ambicioso de seus projetos, a Usina de Angiquinho, a primeira hidrelétrica do país, localizada no município que hoje leva seu nome.
Garoto pobre, Delmiro Augusto da Cruz Gouveia ficou órfão do pai ainda menino. Ao lado da mãe e da irmã, mudou-se para o Recife, onde aos 15 anos - após a morte da mãe - começou a trabalhar. Aos 20, depois de ocupações como cobrador de bonde e despachante, torna-se comerciário e passa a atuar na área de compra e exportação dos chamados "courinhos", isto é, a pele da cabra e do bode.
Tendo apenas o curso primário, a instrução escolar limitada, no entanto, nunca foi um problema para Delmiro. Dotado de notável inteligência para os negócios, o industrial, legítimo representante do pensamento liberal no Brasil, cria em 1899 um centro de comércio, serviços e lazer no bairro recifense do Derby. Inédito para os padrões da época, o empreendimento reunia em um só lugar mercado, hotel, velódromo e um pavilhão de diversões.
 Homem conhecido pelas atitudes empresariais marcadamente à frente de seu tempo, Delmiro também teve uma vida amorosa pouco comum. Não à toa, em 1900 saiu literalmente fugido do Recife, aos ser acusado de rapto de menor, após se apaixonar por Carmela, de 16 anos, filha bastarda do governador de Pernambuco Sigismundo Gonçalves, seu inimigo político.
Foi em decorrência desse incidente sentimental, inclusive, que o industrial acabou vindo parar em território alagoano.
50 anos a mil
Delmiro Gouveia viveu exatos 54 anos. Nesse intervalo de pouco mais de meio século, deixou a infância pobre no interior do Ceará para entrar para a história como o homem responsável por levar a industrialização ao sertão nordestino. Personagem cuja trajetória se confunde com a própria formação do Nordeste moderno, seu legado é pouco ou nada conhecido no país. No ano do centenário da Usina de Angiquinho, seu mais ousado projeto, dois livros ganham reedição - a biografia Delmiro Gouveia - O Pioneiro de Paulo Afonso, de Tadeu Rocha, e o romance O Ninho da Águia - Saga de Delmiro Gouveia, de Adalberon Cavalcanti. Para saber mais sobre a vida e as conquistas do modernizador do sertão, a Gazeta conversou com o professor Edvaldo Francisco Nascimento, autor do prefácio da obra mais completa já escrita sobre o industrial cearense, e com o cineasta baiano Geraldo Sarno, que levou sua história para o cinema.
"O maior legado que Delmiro deixa é mostrar para o sertão e para o sertanejo que a nossa região é possível e o sertanejo é capaz", diz Edvaldo Francisco do Nascimento
Do Recife para Alagoas, na trilha dos desafios.
Gazeta. Delmiro Gouveia teve uma educação formal ou aprendeu fazendo?
 Edvaldo Francisco do Nascimento. Ele aprendeu fazendo. Delmiro teve acesso somente aos primeiros anos de escola.
Poderíamos dizer que Delmiro é um dos primeiros brasileiros a agir conforme os preceitos do pensamento liberal, segundo o qual o trabalho é o principal atributo moral do homem?
Sim, eu acho que é correta essa afirmação. Há um trabalho de doutorado da professora Telma de Barros Correia, no qual ela faz essa análise de Delmiro como o homem que antecipa o desenvolvimento do sistema capitalista no próprio Nordeste. E ele era sim liberal.
Delmiro saiu do Recife fugido depois de se apaixonar pela filha do governador da época ou ele sai da capital pernambucana falido?
Veja só: Delmiro, homem já rico, com seus 38, 39 anos, contrariava alguns interesses da oligarquia política e econômica do Recife. No Mercado do Derby, por exemplo, ele comprou um grande estoque de farinha, que era vendida a um preço mais em conta do que se vendia nos estabelecimentos do Recife. Isso gerou um protesto dos comerciantes, que foram cobrar dos aliados deles, do governador, Sigismundo Gonçalves, e do prefeito do Recife, Esmeraldino Bandeira, algumas providências. Essas providências, por sua vez, eram apreensão de mercadorias de Delmiro e insultos a Delmiro. Isso criou um clima de muita animosidade entre Delmiro, seus amigos, aliados, e os amigos e aliados do prefeito e do governador.
Inclusive há um episódio em que Delmiro agride o então vice-presidente da época...
 Numa dessas situações, Delmiro foi ao Rio de Janeiro, onde encontra Rosa e Silva, então chefe dessa oligarquia (recifense) e vice-presidente da República. Delmiro acaba dando umas bengaladas no vice-presidente na rua do Ouvidor. A situação piora ainda mais quando Delmiro volta para o Recife e os aliados de Rosa e Silva dão o troco e incendeiam o Mercado do Derby; além disso, Delmiro é preso junto com seu sócio, Napoleão Duarte, sob a acusação de terem tramado o incêndio para receber o seguro. O clima era desse nível. Ao ver os jornais da época, principalmente o Diário de Pernambuco, é possível ver os insultos trocados entre eles. O fato é que nesse período Delmiro entra em ruína econômica e, com problemas pessoais, brigando com a primeira esposa, vai passar um ano na Europa.
 Mas ele volta ao Recife?
 Os negócios vão de mal a pior e ele é chamado ao Recife para tomar algumas providências. Quando volta, não sei se por ironia do destino ou se por birra, ele vai se envolver com a filha bastarda do governador - que tinha um relacionamento extraconjugal com uma senhora apelidada no Recife de Doninha, que tinha uma filha muito bonita, Carmela, de 16 anos, com quem Delmiro se envolve. Bom, era tudo que o governador queria para decretar a prisão de Delmiro e abrir um processo por rapto e defloramento de menores, acusação que foi parar no Tribunal de Justiça Federal. O advogado de Delmiro foi coincidentemente seu padrasto, que conseguiu um habeas corpus a favor de Delmiro, que a essa altura já tinha fugido, porque a ordem da polícia era de matá-lo.
Em nota dpara Caramelão autor, Tadeu Rocha diz ter encontrado cartas de Delmiro . Ela então foi esposa de Delmiro até a morte do industrial?
 Ela veio para o sertão de Alagoas, é a mãe dos filhos de Delmiro, que teve três filhos aqui no sertão alagoano: a Noêmia, Noé e Maria Augusta Gouveia. Só que ela tinha um temperamento muito forte. E ela era uma moça com uma cabeça de alguém que vive numa cidade como o Recife. Imagina ela chegar no sertão de Alagoas. Ela não se habituou. Inclusive, ela deixa o (filho) mais novo com aproximadamente um ano de idade e vai embora deixando os filhos com Delmiro, que manda chamar a irmã, então separada, para tomar conta dos filhos dele.
E como Delmiro se ergue novamente nos negócios em uma região onde não havia praticamente nada?
 Ele chega ao sertão alagoano em 1902. E a grande atividade lucrativa desenvolvida por Delmiro era o comércio de couro de animais. E mesmo ele morando no Recife, ele ia buscar essas peças no interior, no sertão. Ao chegar aqui, Delmiro encontra uma posição estratégica no limite de três estados, onde ele comprava a matéria-prima de seus negócios. Então ele retoma a atividade comercial como exportador de pele. Em 1909 já refaz sua fortuna e retoma a liderança no negócio. É com o dinheiro das peles que ele empreende. Lógico que depois ele agrega posses, capital internacional, mas a base da sua fortuna vem do comércio de peles, porque ele tinha lucros exorbitantes; por estratégias que ele utilizava, pela manipulação das peles, criou um sistema de classificação - segurava mercadoria para poder vender mais caro.
E como Delmiro dá início à construção da Usina de Angiquinho?
Em 1909, Delmiro recebe no sertão um grupo de capitalistas americanos, que firmam contrato com ele - cujo grande projeto é produzir energia para vender para o Nordeste, principalmente para o Recife. Então esses capitalistas firmam contrato com Delmiro, mas para esse contrato ser realizado Delmiro tinha que conseguir concessões dos governos de Pernambuco, de Alagoas e da Bahia. Delmiro consegue as concessões de Alagoas e da Bahia, mas não consegue de Pernambuco. Outra grande decepção de Delmiro. À época, o governador de Pernambuco era o general Dantas Barreto, que foi eleito derrotando a oligarquia política de Rosa e Silva, que era inimigo de Delmiro. E o general Dantas Barreto teve o apoio de Delmiro para ser eleito, inclusive Delmiro ia para os comícios no sertão pernambucano a favor de Dantas Barreto. Então ele achava que teria apoio do governo de Pernambuco, mas ele recebeu um não. Então, os possíveis sócios americanos desistiram do negócio. E por isso Delmiro resolve por conta própria dar início a esse negócio. Ele readéqua o seu projeto no sentido de que a energia produzida pela usina será utilizada num projeto que ele vai construindo em paralelo, a fábrica de linhas.
Linha do tempo
* 1863 Nasce Delmiro Gouveia em Ipu, no Ceará
 * 1868 Após a morte do pai, transfere-se com a família para Goiana, em Pernambuco
 * 1872 Muda-se para o Recife
 * 1878 Após a morte da mãe, Delmiro, aos 15 anos, começa a trabalhar como cobrador na Brazilian Street Railways Company
 * 1881 Delmiro trabalha como despachante em um armazém e algodão. Dois anos depois, já era intermediário entre comerciantes do interior e firmas exportadoras de pele e algodão
 * 1891 Delmiro se torna sócio de um inglês num armazém de compra e exportação de couros de cabra e bode
 * 1899 Assume a direção da Usina Beltrão, uma fábrica de refino de açúcar. No mesmo ano inaugura no Derby, bairro do Recife, um centro de comércio, serviços e lazer, que incluía mercado, hotel, velódromo e pavilhão de diversões
 * 1900 Devido a conflitos políticos entre Delmiro e governantes pernambucanos, o Mercado do Derby é incendiado.
 * 1903 Delmiro torna-se proprietário da Fazenda da Pedra, no sertão de Alagoas
 * 1913 Constrói a Hidrelétrica de Angicos junto à Cachoeira de Paulo Afonso para fornecer energia para a fábrica de linhas de costura que inaugura no ano seguinte
 * 1917 Delmiro morre assassinado na varanda de sua casa, em Alagoas
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