Delmiro Gouveia.
Em Coronel Delmiro Gouveia, história do industrial é contada a
partir do ponto de vista de sua esposa, Carmela, do próprio Delmiro, de um de
seus sócios e ainda de um de seus funcionários
Geraldo Sarno não sabia quem era Delmiro Gouveia. Foi em 1967,
durante uma espécie de expedição pelo sertão nordestino, que o documentarista
baiano entrou em contato, pela primeira vez, com a história do industrial
cearense. "Estava com um projeto para fazer dez documentários sobre a
cultura popular nordestina. Percorremos Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do
Norte, Paraíba e Ceará", rememora o cineasta.
Das andanças pela região, Sarno conta que surgiram quatro
filmes: Vitalino Lampião, Os Imaginários, Jornal Sertão e Eu Carrego o Sertão
Dentro de Mim. Foi em meio a esse processo que, numa visita à Companhia
Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), o cineasta se deparou com um busto em
homenagem a Delmiro Gouveia. Curioso, perguntou ao vigia da hidrelétrica quem
era o homem retratado na escultura.
"Tomei um susto quando soube de tudo aquilo", diz
Sarno sobre as primeiras impressões que teve ao conhecer a trajetória de
Delmiro. Em busca de mais histórias sobre o industrial, o cineasta também
esteve na cidade alagoana de Delmiro Gouveia, onde encontrou em ruínas a Usina
de Angiquinho, a casa na qual Delmiro havia morado e o que havia restado da
Fábrica da Pedra.
Entre o primeiro contato com a história do industrial sertanejo
e o início das filmagens de Coronel Delmiro Gouveia uma década se passou.
Embora se firmando como documentarista Sarno preferiu retratar a trajetória de
Delmiro por meio de um filme ficcional. "Resolvi fazer uma ficção porque a
história era muito forte", rememora ele.
Delmiro e a reinvenção do Sertão
Nascido no Ceará, Delmiro Gouveia cresceu no Recife do século
19, então um dos mais importantes centros urbanos e comerciais do Brasil
Um ’incidente emocional’ motivou a fuga de Delmiro do Recife
para Alagoas, em 1900
Modernizador do sertão. Rei das peles. Pioneiro de Paulo Afonso.
Estas são apenas algumas das denominações recebidas por Delmiro Gouveia
(1863-1917). Natural de Ipu, no Ceará, o industrial cresceu no Recife do século
19, um importante centro comercial e cultural não apenas para o Nordeste, mas
também para todo o Brasil da época. E ainda que tenha ascendido socialmente na
capital pernambucana, foi em Alagoas que Delmiro ergueu o mais ambicioso de
seus projetos, a Usina de Angiquinho, a primeira hidrelétrica do país,
localizada no município que hoje leva seu nome.
Garoto pobre, Delmiro Augusto da Cruz Gouveia ficou órfão do pai
ainda menino. Ao lado da mãe e da irmã, mudou-se para o Recife, onde aos 15
anos - após a morte da mãe - começou a trabalhar. Aos 20, depois de ocupações
como cobrador de bonde e despachante, torna-se comerciário e passa a atuar na
área de compra e exportação dos chamados "courinhos", isto é, a pele
da cabra e do bode.
Tendo apenas o curso primário, a instrução escolar limitada, no
entanto, nunca foi um problema para Delmiro. Dotado de notável inteligência
para os negócios, o industrial, legítimo representante do pensamento liberal no
Brasil, cria em 1899 um centro de comércio, serviços e lazer no bairro
recifense do Derby. Inédito para os padrões da época, o empreendimento reunia
em um só lugar mercado, hotel, velódromo e um pavilhão de diversões.
Homem conhecido pelas atitudes empresariais marcadamente à
frente de seu tempo, Delmiro também teve uma vida amorosa pouco comum. Não à
toa, em 1900 saiu literalmente fugido do Recife, aos ser acusado de rapto de
menor, após se apaixonar por Carmela, de 16 anos, filha bastarda do governador
de Pernambuco Sigismundo Gonçalves, seu inimigo político.
Foi em decorrência desse incidente sentimental, inclusive, que o
industrial acabou vindo parar em território alagoano.
50 anos a mil
Delmiro Gouveia viveu exatos 54 anos. Nesse intervalo de pouco
mais de meio século, deixou a infância pobre no interior do Ceará para entrar
para a história como o homem responsável por levar a industrialização ao sertão
nordestino. Personagem cuja trajetória se confunde com a própria formação do
Nordeste moderno, seu legado é pouco ou nada conhecido no país. No ano do
centenário da Usina de Angiquinho, seu mais ousado projeto, dois livros ganham
reedição - a biografia Delmiro Gouveia - O Pioneiro de Paulo Afonso, de Tadeu
Rocha, e o romance O Ninho da Águia - Saga de Delmiro Gouveia, de Adalberon
Cavalcanti. Para saber mais sobre a vida e as conquistas do modernizador do
sertão, a Gazeta conversou com o professor Edvaldo Francisco Nascimento, autor
do prefácio da obra mais completa já escrita sobre o industrial cearense, e com
o cineasta baiano Geraldo Sarno, que levou sua história para o cinema.
"O maior legado que Delmiro deixa é mostrar para o sertão e
para o sertanejo que a nossa região é possível e o sertanejo é capaz", diz
Edvaldo Francisco do Nascimento
Do Recife para Alagoas, na trilha dos desafios.
Gazeta. Delmiro Gouveia teve uma educação formal ou aprendeu
fazendo?
Edvaldo Francisco do Nascimento. Ele aprendeu fazendo.
Delmiro teve acesso somente aos primeiros anos de escola.
Poderíamos dizer que Delmiro é um dos primeiros brasileiros a
agir conforme os preceitos do pensamento liberal, segundo o qual o trabalho é o
principal atributo moral do homem?
Sim, eu acho que é correta essa afirmação. Há um trabalho de
doutorado da professora Telma de Barros Correia, no qual ela faz essa análise
de Delmiro como o homem que antecipa o desenvolvimento do sistema capitalista
no próprio Nordeste. E ele era sim liberal.
Delmiro saiu do Recife fugido depois de se apaixonar pela filha
do governador da época ou ele sai da capital pernambucana falido?
Veja só: Delmiro, homem já rico, com seus 38, 39 anos,
contrariava alguns interesses da oligarquia política e econômica do Recife. No
Mercado do Derby, por exemplo, ele comprou um grande estoque de farinha, que
era vendida a um preço mais em conta do que se vendia nos estabelecimentos do
Recife. Isso gerou um protesto dos comerciantes, que foram cobrar dos aliados
deles, do governador, Sigismundo Gonçalves, e do prefeito do Recife,
Esmeraldino Bandeira, algumas providências. Essas providências, por sua vez,
eram apreensão de mercadorias de Delmiro e insultos a Delmiro. Isso criou um
clima de muita animosidade entre Delmiro, seus amigos, aliados, e os amigos e
aliados do prefeito e do governador.
Inclusive há um episódio em que Delmiro agride o então
vice-presidente da época...
Numa dessas situações, Delmiro foi ao Rio de Janeiro, onde
encontra Rosa e Silva, então chefe dessa oligarquia (recifense) e
vice-presidente da República. Delmiro acaba dando umas bengaladas no
vice-presidente na rua do Ouvidor. A situação piora ainda mais quando Delmiro
volta para o Recife e os aliados de Rosa e Silva dão o troco e incendeiam o
Mercado do Derby; além disso, Delmiro é preso junto com seu sócio, Napoleão
Duarte, sob a acusação de terem tramado o incêndio para receber o seguro. O
clima era desse nível. Ao ver os jornais da época, principalmente o Diário de
Pernambuco, é possível ver os insultos trocados entre eles. O fato é que nesse
período Delmiro entra em ruína econômica e, com problemas pessoais, brigando
com a primeira esposa, vai passar um ano na Europa.
Mas ele volta ao Recife?
Os negócios vão de mal a pior e ele é chamado ao Recife
para tomar algumas providências. Quando volta, não sei se por ironia do destino
ou se por birra, ele vai se envolver com a filha bastarda do governador - que
tinha um relacionamento extraconjugal com uma senhora apelidada no Recife de
Doninha, que tinha uma filha muito bonita, Carmela, de 16 anos, com quem
Delmiro se envolve. Bom, era tudo que o governador queria para decretar a
prisão de Delmiro e abrir um processo por rapto e defloramento de menores,
acusação que foi parar no Tribunal de Justiça Federal. O advogado de Delmiro
foi coincidentemente seu padrasto, que conseguiu um habeas corpus a favor de
Delmiro, que a essa altura já tinha fugido, porque a ordem da polícia era de
matá-lo.
Em nota dpara Caramelão autor, Tadeu Rocha diz ter encontrado
cartas de Delmiro . Ela então foi esposa de Delmiro até a morte do industrial?
Ela veio para o sertão de Alagoas, é a mãe dos filhos de
Delmiro, que teve três filhos aqui no sertão alagoano: a Noêmia, Noé e Maria
Augusta Gouveia. Só que ela tinha um temperamento muito forte. E ela era uma
moça com uma cabeça de alguém que vive numa cidade como o Recife. Imagina ela
chegar no sertão de Alagoas. Ela não se habituou. Inclusive, ela deixa o
(filho) mais novo com aproximadamente um ano de idade e vai embora deixando os
filhos com Delmiro, que manda chamar a irmã, então separada, para tomar conta
dos filhos dele.
E como Delmiro se ergue novamente nos negócios em uma região
onde não havia praticamente nada?
Ele chega ao sertão alagoano em 1902. E a grande atividade
lucrativa desenvolvida por Delmiro era o comércio de couro de animais. E mesmo
ele morando no Recife, ele ia buscar essas peças no interior, no sertão. Ao
chegar aqui, Delmiro encontra uma posição estratégica no limite de três
estados, onde ele comprava a matéria-prima de seus negócios. Então ele retoma a
atividade comercial como exportador de pele. Em 1909 já refaz sua fortuna e
retoma a liderança no negócio. É com o dinheiro das peles que ele empreende.
Lógico que depois ele agrega posses, capital internacional, mas a base da sua
fortuna vem do comércio de peles, porque ele tinha lucros exorbitantes; por
estratégias que ele utilizava, pela manipulação das peles, criou um sistema de
classificação - segurava mercadoria para poder vender mais caro.
E como Delmiro dá início à construção da Usina de Angiquinho?
Em 1909, Delmiro recebe no sertão um grupo de capitalistas
americanos, que firmam contrato com ele - cujo grande projeto é produzir
energia para vender para o Nordeste, principalmente para o Recife. Então esses
capitalistas firmam contrato com Delmiro, mas para esse contrato ser realizado
Delmiro tinha que conseguir concessões dos governos de Pernambuco, de Alagoas e
da Bahia. Delmiro consegue as concessões de Alagoas e da Bahia, mas não
consegue de Pernambuco. Outra grande decepção de Delmiro. À época, o governador
de Pernambuco era o general Dantas Barreto, que foi eleito derrotando a
oligarquia política de Rosa e Silva, que era inimigo de Delmiro. E o general
Dantas Barreto teve o apoio de Delmiro para ser eleito, inclusive Delmiro ia
para os comícios no sertão pernambucano a favor de Dantas Barreto. Então ele
achava que teria apoio do governo de Pernambuco, mas ele recebeu um não. Então,
os possíveis sócios americanos desistiram do negócio. E por isso Delmiro
resolve por conta própria dar início a esse negócio. Ele readéqua o seu projeto
no sentido de que a energia produzida pela usina será utilizada num projeto que
ele vai construindo em paralelo, a fábrica de linhas.
Linha do tempo
* 1863 Nasce Delmiro Gouveia em Ipu, no Ceará
* 1868 Após a morte do pai, transfere-se com a família
para Goiana, em Pernambuco
* 1872 Muda-se para o Recife
* 1878 Após a morte da mãe, Delmiro, aos 15 anos, começa a
trabalhar como cobrador na Brazilian Street Railways Company
* 1881 Delmiro trabalha como despachante em um armazém e
algodão. Dois anos depois, já era intermediário entre comerciantes do interior
e firmas exportadoras de pele e algodão
* 1891 Delmiro se torna sócio de um inglês num armazém de
compra e exportação de couros de cabra e bode
* 1899 Assume a direção da Usina Beltrão, uma fábrica de
refino de açúcar. No mesmo ano inaugura no Derby, bairro do Recife, um centro
de comércio, serviços e lazer, que incluía mercado, hotel, velódromo e pavilhão
de diversões
* 1900 Devido a conflitos políticos entre Delmiro e
governantes pernambucanos, o Mercado do Derby é incendiado.
* 1903 Delmiro torna-se proprietário da Fazenda da Pedra,
no sertão de Alagoas
* 1913 Constrói a Hidrelétrica de Angicos junto à
Cachoeira de Paulo Afonso para fornecer energia para a fábrica de linhas de costura que inaugura no ano seguinte
* 1917 Delmiro morre assassinado na varanda de sua casa,
em Alagoas
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